domingo, 1 de novembro de 2009

Hora do folhetim - 6

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Os dias quentes e as noites frescas passaram com a rapidez do vento, os montes de neve desapareceram das depressões escuras do terreno, e as sóbrias tonalidades cinzentas da paisagem da tundra transformaram-se num flamejante tapete de flores amarelas e rosadas. Mas a fêmea do maçaricão não chegou. As narcejas juntaram-se às centenas, lutaram por uma reserva, acasalaram, fizeram ninhos. Prepararam-se para dar início a um novo ciclo de vida, objectivo pelo qual tinham voado dez ou doze mil quilómetros. O maçaricão lutou como um louco contra as tarambolas, contra qualquer maçarico-das-rochas que atravessasse a fronteira da sua reserva, até esta ficar salpicada das penas castanhas dos intrusos, que demasiado tarde fugiram aos seus ataques. As hormonas do acasalamento, segregadas pelas glândulas, acumulavam-se nele como uma carga explosiva.
O maçaricão lutou contra cada narceja que ousasse chegar-se a ele. Porém, o seu modelo instintivo de comportamento não lhe permitiu ser hostil para com as escrevedeiras, os tentilhões e os lagópodes-brancos, que também povoavam a tundra. Estes não eram biologicamente seus parentes próximos, nem lhe disputavam o alimento de que necessitava para as crias, logo que a fêmea chegasse. Uma fêmea de galo branco fizera o ninho a menos de cinco metros do lugar onde haveria de ficar o seu. Mas o maçaricão mal dera por isso, e após alguns dias já tinha esquecido que ele estava ali.
As noites foram-se tornando maiores e mais escuras. As flores minúsculas e claras da tundra deram lugar a sementes emplumadas, que pareciam tramas de seda. Muito perto, um par excitado de tarambolas-douradas começou a gritar. O negro da penugem do papo e da barriga brilhava intensamente aos raios do sol matinal que apareceu lá longe, no horizonte. Então elas começaram a voar em círculos, rapidamente. O maçaricão sabia que as crias já tinham saído da casca. Tinham acabado de deixar o ninho, bem desenvolvidas desde o início, como todas as narcejas. E agora corriam ali à volta, antes de secarem completamente as cascas do ovo que as tinha protegido. O verão polar ia chegando ao fim.
Várias crias aveludadas corriam pela reserva do maçaricão, atrás da mãe que trazia comida. Este lançou um assobio de aviso na sua direcção e investiu contra elas. As crias gritaram pela mãe, e isso teve sobre ela mais efeito do que o medo de uma ave estranha e muito maior. A fêmea não fugiu. Ficou parada e abriu as asas protectoras sobre as minúsculas bolas de penas que piavam, agachadas no tapete de musgo. O maçaricão levantou voo sem se dirigir a elas, e não voltou a atacá-las. Planou trinta metros até um monte de rochas onde poisou, observou durante um momento como ela alimentava os filhos e esqueceu-os.
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