terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Os madrugadores de Riba-Côa

Hora do folhetim - 14

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O CORREDOR DA MORTE

SESSÕES DA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS NATURAIS
DE FILADÉLFIA - 1861

13 de Agosto. Presidência do Dr. Leidy, com a presença de nove membros. Foram apresentados os seguintes artigos para divulgação: Robert Kennicott, “Sobre três novas formas de cobra cascavel”; Elliott Coues, “Notas sobre a ornitologia do Lavrador”...
Um extraordinário número de maçaricões-esquimós chegou à costa do Lavrador, vindo dos locais de nidificação situados a norte. Estas aves voam muito rapidamente, em bandos enormes, contando muitas vezes vários milhares de exemplares... Eu próprio pude observar uma espantosa ilustração da persistência com que se agarram a determinados locais de alimentação, mesmo quando severamente molestados. A maré alta ia alagando uma zona pantanosa com cerca de um acre de extensão, onde abundavam os caracóis que eles tanto apreciam. Embora ali estivessem cinco ou seis caçadores, que de todos os lados disparavam incessantemente contra as pobres aves, elas continuavam a circular sobre nós, confundidas e excitadas, apesar de muitas delas irem sendo atingidas e caírem ao solo. Pareciam muito preocupadas com a possibilidade de os caracóis, seu petisco habitual, lhes poderem escapar...

Por determinação da comissão editorial e bibliotecária, são divulgadas as seguintes sessões da Sociedade de História Natural de Boston, de 1906/1907...
Comunicação n° 7 - Dr. Méd. Charles W. Tounsend e Glover M. Allen, “As aves do Lavrador”... Numenius borealis (Forster), maçaricão-esquimó. Um hóspede do Lavrador antigamente muito abundante, hoje muito raro.

Vem Agosto e tu estás no mar
Chegam aqui mil belos maçaricos todos os dias.


Packard escreve deste modo: “A 10 de Agosto de 1860 apareceram os maçaricões em bandos. Vimos um que tinha bem um quilómetro e meio de comprimento e quase outro tanto de largura. O barulho que faziam parecia às vezes o vento que zune no cordame dum navio de mil toneladas...”.
Porém, aquando da nossa visita à costa do Lavrador, no verão de 1906, já não vimos um único maçaricão-esquimó. Falámos com muitos habitantes daqui e todos concordaram em que ele ficou de repente reduzido, sendo outrora muito disseminado. Agora, no outono, avistam-se apenas dois ou três, ou mesmo nenhum. O capitão Parsons, do barco postal Virginia Lake, disse-nos que ainda havia muitos, aqui há 30 anos. Nesse tempo, antes do pequeno-almoço, abatia ele uma centena, chegando mesmo a atingir vinte com um único tiro. Os pescadores matavam milhares de maçaricões... Tinham as espingardas preparadas nos pontões e atiravam aos bandos que chegavam aqui, matando 20 ou 25 aves por cada tiro. Resumindo, podemos dizer que os habitantes do Lavrador sempre perseguiram o maçaricão-esquimó, mas só entre 1888 e 1890 verificaram que os efectivos se tinham reduzido. A partir de 1892, só um pequeno número destas aves, antigamente tão abundantes, visitou a costa do Lavrador... Parece que esta espécie está em vias de extinção.

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Um mundo feito à mão-4


A carne fornecida por uma vaca representa 1.500 refeições. Os cereais que ela comeu representariam 18.000.

Planeta-Mãe - 4

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IRREGULARIDADES CLIMATÉRICAS
Falamos aqui de irregularidades climáticas, e não do aquecimento global. Mesmo estando intimamente ligados, são dois fenómenos diversos. Tal como o aquecimento global, a irregularidade climática é consequência do desequilíbrio na composição gasosa da atmosfera. Os gases com efeito de estufa fazem não só aumentar a temperatura média, mas contribuem também para o aumento das amplitudes térmicas: as temperaturas máximas são cada vez mais elevadas, e as mínimas cada vez mais baixas.
Este aumento de amplitude entre as temperaturas extremas influencia directamente os fenómenos climáticos. As tempestades, os furacões, os ciclones, resultam do choque entre massas de ar quente e húmido, e massas de ar frio. Quanto maior for a diferença de temperaturas, mais intensos e numerosos são estes fenómenos. É verdade que sempre existiram fenómenos climáticos extremos, como os arquivos atestam. Mas nas últimas décadas assistimos a um recrudescimento dos fenómenos violentos. Tornou-se banal bater recordes neste campo.
Nos últimos 20 anos, segundo um relatório da organização humanitária OXFAM publicado em Novembro de 2007, quadruplicou o número de catástrofes naturais ligadas ao clima. Passaram de 120 por ano, em média, no início dos anos 80, para perto de 500 actualmente. A organização estima que o número de pessoas atingidas todos os anos passou de 174 milhões entre 1985 e 1994, para 254 milhões entre 1995 e 2004.
Além do sofrimento humano e das perdas materiais que provocam, estes fenómenos climatéricos têm consequências significativas para a agricultura e a produção mundial de alimentos.
As geadas tardias comprometem as produções fruteiras e de outros primores, as tempestades destroem as colheitas, os períodos de canícula e de seca reduzem consideravelmente os rendimentos. Isto enquanto os excessos de água arrastam o apodrecimento, favorecem o desenvolvimento de doenças e limitam o potencial de conservação dos produtos. A actualidade é caracterizada por um fluxo quase contínuo de acontecimentos deste tipo.
As colheitas da campanha de 2007, na Europa, foram particularmente medíocres: o noroeste do continente teve um Verão particularmente húmido, enquanto o sueste conheceu uma canícula e uma seca sem precedentes.
A Índia sofreu em Outubro de 2007 a “monção do século”, que destruiu cerca de um terço das colheitas do país.
Depois de vários anos de seca, a Austrália suportou no final de 2007 a “seca do século”. A colheita cerealífera foi reduzida.
Em consequência dum fenómeno climatérico até então desconhecido e não explicado pelos meteorologistas, o centro do continente africano foi fustigado por chuvas diluvianas no Outono de 2007. Colheitas e rebanhos foram destruídos em oito países.
Os rebanhos de ovinos da Nova Zelândia, principal recurso agrícola do país, sofreram uma redução espectacular em 20 anos. No seguimento de um período de seca inaudito, a diminuição atingiu 11% só no ano de 2007.
Em França, a primavera fria e húmida de 2008 limitou a polinização das árvores de fruto. Certas colheitas de pêssegos e alperces foram divididas por quatro, particularmente no vale do Ródano. Os altos preços atingidos foram consequência da escassez. E assim por diante.
Todos estes fenómenos acarretam uma redução da oferta de alimentos nos mercados nacionais e mundiais. Para além do desaparecimento longínquo dos bancos de gelo, ou de certas ilhotas do fim do mundo, as irregularidades climáticas já nos atingem, pelo custo crescente daquilo que pomos no prato.
Tais fenómenos contribuem também para o aumento da procura: a sobrevivência alimentar das populações sinistradas depende de recursos vindos de algures. Nos países pobres, estes alimentos dependem muitas vezes de acções humanitárias. Poderão os orçamentos das ONG’s crescer ao mesmo ritmo da procura, enfrentando a alta dos preços de mercado? Se um dia a oferta não for suficiente para cobrir as necessidades dos países ricos, que parte restará para os países pobres?
A acreditar nas perspectivas actuais de evolução do clima, é de esperar o aumento dos fenómenos climatéricos violentos nos anos vindouros. E depois dos transportes, a agricultura intensiva é a segunda fonte de emissão de gases com efeito de estufa. É o arroseur arrosé!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Hora do folhetim - 13

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Pela manhã, a tundra que se via lá em baixo já não era tão cinzenta e monótona. Manchas escuras e sinuosas atravessavam o terreno. Desde o cair da noite, as aves tinham deixado para trás seiscentos quilómetros, e agora aproximavam-se da fronteira dos bosques subárcticos de abetos. Os prolongamentos escuros que penetravam na tundra eram vales de rios florestados. Estes vales protegiam os pequenos abetos das tempestades de neve, e permitiam-lhes sobreviver. Aos primeiros alvores da manhã, as aves desceram na zona pantanosa de um lago. Repousaram por uns momentos e começaram a comer logo que a manhã clareou.
Com as sua pernas altas e o bico encurvado, o maçaricão sobressaía claramente no meio das tarambolas, que tinham penas mais escuras e bicos mais curtos. Sendo concorrentes e inimigas na reserva, as duas espécies migravam em conjunto há inúmeras gerações, e aqui misturavam-se como iguais. Chegavam outras narcejas - pernas-amarelas, borrelhos e pequenos pilritos-das-praias - andavam por ali e retiravam-se. O maçaricão observava-os cuidadosamente, pois algures na tundra imensa deveria haver companheiros seus.
Comiam durante todo o dia, e só ocasionalmente faziam uma pausa para descanso. Quando chegava a escuridão, voavam de novo. Durante a subida era frouxa a coesão dentro do bando. Mas, logo que ganhavam altura, faziam rapidamente a sua formação em cunha, graças à qual a raiz da asa de cada ave era sustentada pelo turbilhão da asa da ave precedente. O maçaricão assumiu o comando e as tarambolas cerraram formação atrás dele, com elegância e leveza, como se tivessem treinado longamente a manobra. Elas não tinham escolhido conscientemente um chefe. Este tinha que se esforçar particularmente para vencer a resistência do ar, e para obter impulso ascencional e velocidade de avanço. Uma vez que o maçaricão era o voador mais forte, o resto do bando colocou-se atrás dele. E as tarambolas organizaram a sua formação tão espontânea e automaticamente como respiravam.
Depois de voarem algum tempo, as linhas escuras abaixo deles entrelaçaram-se num verdadeiro tapete. Agora encontravam-se sobre os bosques de abetos, e a tundra tinha ficado para trás. Outras narcejas voavam directamente para sul, na direcção dos planaltos, mas o maçaricão conduziu o bando para sueste, em busca dos arandos do Lavrador. Ocasionalmente entregou a chefia a uma tarambola, e tomou posição no meio da formação. Mas, após um curto repouso, retomou de novo o lugar inicial.
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Um mundo feito à mão-3


Para encher o depósito duma viatura 4X4 com etanol puro, são precisos mais de 200 Kg de milho. Calorias bastantes para alimentar uma pessoa durante um ano.

Planeta-Mãe - 3

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PENÚRIA ALIMENTAR NO OCIDENTE: CAUSAS DUMA RECONHECIDA AMEAÇA

POR QUE RAZÃO BAIXA A PRODUTIVIDADE?

A produção agrícola mundial aumentou fortemente durante o último meio século. Mas este aumento já não é consequência dum aumento da produtividade. Resulta principalmente dum aumento constante das áreas cultivadas no planeta. Desflorestação, irrigação intensiva e ordenamento do território fazem parte dos meios postos em acção nos últimos decénios para aumentar as superfícies cultivadas intensivamente.
Este aumento permitiu compensar uma tendência verificada há muito tempo: a produtividade da agricultura intensiva é cada vez mais aleatória, e globalmente tende a baixar. O aumento dos meios técnicos, agronómicos e químicos não consegue entravar esta tendência. Desde há alguns anos, ela é cada vez mais marcada. Hoje, o aumento das superfícies cultivadas não basta para compensar ao mesmo tempo o aumento da procura nos mercados mundiais e a redução do volume das colheitas. Verifica-se o risco de ver cair fortemente a produção agrícola mundial. A crise da primavera de 2008 apenas o recorda. Este risco é alimentado por numerosos factores:
- Irregularidades climatéricas
- Escassez de água
- Erosão dos solos
- Declínio das abelhas
- Risco das pragas vegetais
- Risco de epizootias animais
- Crise financeira
- Rurbanização
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quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Planeta-Mãe - 2

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Desde há muito tempo que a produção agrícola mundial apenas aproveita ao mundo solvente: NÓS. Para ser “comprador” no mercado mundial de produtos alimentares, é preciso oferecer um preço de compra; é preciso ter dinheiro. Por definição, os países pobres não são solventes. TER O ESTÔMAGO VAZIO NÃO É CRITÉRIO SUFICIENTE PARA SER CONSIDERADO REQUERENTE DE ALIMENTOS NO MERCADO MUNDIAL DOS PRODUTOS ALIMENTARES. É assim que certas multinacionais agro-alimentares ou agro-químicas puderam arrogantemente afixar slogans do tipo “nós alimentamos o mundo” (Nestlé), a despeito dos números da fome no mesmo mundo.
Nos tempos da sobre-produção agrícola, acumulavam-se e degradavam-se na Europa stocks monstruosos, que acabavam geralmente por ser destruídos, enquanto a penúria alimentar afectava já centenas de milhões de pessoas no planeta. Foram estes stocks que Coluche se propôs distribuir aos mais carenciados, criando os Restos du Coeur. Só eles servem mais de 80 milhões de refeições por ano, em França. E foi graças à entreajuda e à solidariedade que as populações pobres dos países ricos foram relativamente poupadas à fome, nas últimas décadas.
Os tempos mudaram. Os stocks de alimentos perdidos são imagens do passado. À baixa contínua dos preços dos produtos alimentares sucedeu o seu aumento. Entre Março de 2007 e Março de 2008, duplicaram os preços do trigo e do arroz; o do milho cresceu mais de um terço. Esta subida era o sintoma dum risco de escassez. Este risco era, ele mesmo, consequência duma degradação no terreno, que vinha de há anos. Desde o início dos anos 2000, multiplicam-se as más colheitas, ao mesmo tempo que aumenta a procura nos mercados.
Entre os anos 2005 e 2008, a produção mundial de cereais foi inferior ao consumo, e lançou-se mão dos stocks para satisfazer a procura. No princípio de 2008, os stocks mundiais de cereais estavam ao nível mais baixo dos últimos 25 anos. Num sistema económico em que o valor dos bens é determinado pela lei da oferta e da procura, o que ameaça tornar-se raro torna-se caro. Os mercados financeiros anteciparam este risco de escassez, investindo no mercado dos produtos agrícolas. A subida dos preços do início do ano 2008 era consequência desta antecipação. E esta especulação apenas revelou uma realidade ignorada até então: a ameaça de penúria alimentar aproxima-se das fronteiras dos países desenvolvidos.
Finalmente, a campanha agrícola do hemisfério norte foi excelente em 2008, afastando provisoriamente o risco de penúria alimentar. Os preços começaram a cair no fim do Verão. Por quanto tempo? Até Fevereiro de 2009, uma vez que a seca verificada no hemisfério sul ameaçava as colheitas da Austrália e da América do Sul. Na segunda semana desse mês, o preço dos cereais subiu 20%. No dia em que a produção agrícola mundial for de novo insuficiente, e os stocks não permitam compensá-la, a penúria alimentar será uma realidade no Ocidente. Nessa situação, já não será apenas uma questão de especulação bolsista, de alta dos preços, ou de entreajuda e de fraternidade: não haverá alimentação suficiente para toda a gente.
Uma parte da população arrisca-se a descobrir então que ainda dependemos dos ciclos da Natureza, mormente o ciclo das estações. A menos que vão pilhar as colheitas do outro hemisfério para passar o Inverno, desta vez são as populações pobres dos nossos países “ricos”que terão que aceitar a fome.
O risco de penúria alimentar é consequência de duas tendências de fundo: a diminuição da produtividade da agricultura intensiva e o aumento da procura.
É objectivo deste trabalho permitir a compreensão dos fenómenos em curso, e evidenciar as soluções para lhes fazer face.
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Um mundo feito à mão-2

Moinho hidráulico ou arca de Noé?!

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Planeta-Mãe - 1

QUESTÕES DE CIRCUNSTÂNCIA
Crises energética e financeira, sobre-endividamento das famílias, das empresas e dos estados, desemprego e redução do poder de compra… numerosos são os males que afectam a saúde da economia.
Acentuação das desigualdades entre países e entre indivíduos, concentração das riquezas nas mãos duma minoria, aumento da miséria humana e da sua exploração… são inquietações numerosas que cristalizam o sentimento de injustiça e a violência.
Irregularidades climáticas, poluição e penúria de água, poluição do ar e dos solos, redução da biodiversidade… são ameaças numerosas que pesam sobre o futuro da vida na Terra.
O sofrimento da fome e da malnutrição faz parte do quotidiano de mais de um bilião de seres humanos. O fenómeno não é recente. Nem cessou de agravar-se ao longo das últimas décadas, ao mesmo tempo que a obesidade no Ocidente se desenvolvia.
No princípio de 2008, os preços dos produtos alimentares atingiam extremos nos mercados mundiais. As “revoltas da fome” surgiram em vários países, como o Egipto, os Camarões, o México… De acordo com a FAO – o departamento da ONU que se ocupa dos problemas alimentares e agrícolas mundiais – a crise alimentar afectou mais de 40 países. Desta vez não foram apenas afectadas as populações dos países mais pobres do planeta.
De todos os males que sobrecarregam a economia, de todas as perturbações que suscitam a cólera e a revolta, de todas as ameaças que pairam sobre o nosso futuro, o pior podia muito bem ser a penúria alimentar.
Tal ideia parecerá difícil de entender aos nossos espíritos de ocidentais do séc. XXI, que há três gerações conhecem a abundância alimentar, desde o pós-guerra. Desde há 60 anos, o único obstáculo para usufruir de uma oferta quase ilimitada de alimentos é poder pagá-la. Para a maioria de nós, a fome é uma sensação física desagradável que ignoramos. Como é que este flagelo do passado poderia ameaçar-nos de novo? Como é que um país como a França, terra agrícola por excelência, poderia ter um dia falta de alimentos? O que é que verdadeiramente se passa no mercado dos produtos alimentares?

Desperdícios nos países ricos, especulação bolsista, aumento da população mundial… diversos factores são evocados para explicar o agravamento da crise alimentar mundial. Entre a análise dos ecologistas e a dos dirigentes das multinacionais da agro-química, entre o ponto de vista dum grande produtor de cereais e o dum pequeno apicultor, entre a opinião dos políticos e a dos consumidores empobrecidos, é muitas vezes difícil formar uma opinião. As nossas emoções perante os acontecimentos impedem-nos por vezes o necessário distanciamento. Resta-nos um ponto de vista parcial, face a problemas cujas causas geralmente são globais. Quando estão em jogo interesses económicos maiores, o ponto de vista de alguns pode mesmo tornar-se parcial.
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Um mundo feito à mão-1

São necessárias 26 mil torres eólicas de última geração para produzir a mesma quantidade de electricidade dum reactor nuclear.

Hora do folhetim - 12

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A distância diminuiu rapidamente, e as aves que o precediam tomaram forma nítida. Eram pequenas, muito mais pequenas do que ele. Mas agora já não sentia a rejeição instintiva que o levara a não dar qualquer atenção aos maçaricões-norte-americanos ou às narcejas. Continuava a sentir o mesmo impulso de se juntar a um bando. Soltou um grito de chamamento discreto, responderam-lhe tarambolas-douradas.
Tratava-se de um grupo de quarenta ou cinquenta aves, e o maçaricão alinhou na parte de trás da cunha. Reduziu a velocidade e anunciou a sua presença com uma série de gorjeios rápidos. Todo o bando respondeu em uníssono com trinados fortes. O ímpeto do maçaricão ficou silenciado. No mais fundo de si agitava-se ainda um fraco e indefinido sentimento de solidão, mas a partir de agora já não voava sozinho.



De entre as mais de trinta espécies de narcejas que todos os outonos migram do Árctico canadiano para o sul, apenas a tarambola-dourada é um companheiro de viagem adequado para o maçaricão-esquimó. Ambos têm velocidades de voo semelhantes e apreciam idêntico alimento. Mas há ainda outra razão mais importante. As tarambolas e os maçaricões são voadores particularmente resistentes, e rejeitam a rota terrestre sobre a América do Norte, que todas as outras aves de arribação adoptam. Em vez disso dirigem-se para leste, até às costas rochosas do Lavrador, da Terra Nova e da Nova Escócia, e daí voam directamente para sul, sobre o Atlântico. Vencem esta etapa de 4 mil quilómetros ou mais, num esgotante voo de quarenta e oito horas sem escala. Não fazem qualquer paragem até alcançarem terra de novo, na costa norte da América do Sul.
Muitas vezes junta-se às tarambolas-douradas um grande fuselo americano, e ocasionalmente acompanham-nas também outras narcejas, na longa rota do Atlântico. Esta rota é de facto um encurtamento, mas só o maçaricão-esquimó e a tarambola-dourada a percorrem regularmente todos os outonos. Entre as aves do Árctico, só eles possuem a força e a velocidade de voo indispensáveis para fugir ou enfrentar as tempestades do alto mar, que não são raras. Além disso, graças a esta rota, elas podem usufruir dos arandos escuros que amadurecem no outono e crescem abundantemente nas encostas e nos planaltos do Lavrador. As aves que migram sobre o continente privam-se destas reservas de alimento. Ao contrário, na primavera, as tarambolas e os maçaricões têm que seguir a rota habitual sobre as planícies do Oeste, pois nessa altura os arandos estão endurecidos e mortos, debaixo da neve. No Lavrador ainda domina o inverno, quando o Árctico já se cobre dos verdores da primavera.
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Planeta-Mãe - 0



Quando a última árvore tiver sido derrubada
E a última peça de caça tiver sido morta
E a última ribeira tiver sido envenenada
E o último peixe tiver sido pescado…
Então descobrireis que o dinheiro não se come!
[da sabedoria ameríndia]


Aqui se inicia a apresentação de PLANETA-MÃE, um trabalho adaptado de Alain Dawid, o “camponês itinerante”. Tendo desenvolvido actividades na banca e na indústria francesas, conheceu por dentro muitos dos mecanismos que condicionam a evolução da vida e da economia das nossas sociedades. A sua perspectiva não é exactamente a portuguesa. Mas hoje em dia bem pouco é o que dela nos separa.
Constatando que o actual sistema sócio-económico se encontra à beira do caos, abandona tudo em 2004, e funda a Associação Planeta-Mãe na Primavera de 2005. Toma para si a máxima “Mudar o mundo começa por nos mudarmos a nós próprios”. Para Dawid, o retorno à terra não é um passo atrás, mas antes um regresso ao essencial. Conhecer o seu pensamento ajuda a entender as coisas.
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Hora do folhetim - 11

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Porém, com excepção das tarambolas-douradas, nenhuma narceja era tão rápida como o maçaricão. E assim ele alcançava sempre os bandos que voavam na sua dianteira. Primeiro ouvia os ténues gorgeios, através dos quais as aves comunicavam. Depois o turbilhão tornava-se mais forte. E finalmente surgia o bando, confundido com o cinzento do céu. O maçaricão acompanhava-o durante algum tempo, mas acabava por ultrapassá-lo, devido à sua maior velocidade. E continuava a voar sozinho.
Nessa noite aconteceu isso várias vezes, pois as camadas de ar por cima da tundra em arrefecimento estavam agitadas, e a maioria dos bandos voava à mesma altitude, um pouco acima dos níveis de turbulência. Pela manhã o maçaricão deparou com uma esteira mais larga, e adaptou o batimento de asa às novas condições de impulsão. Voou assim durante longo tempo, e o turbilhão causado pelas pontas das asas das aves que o precediam manteve-se inalterável. Desta vez ele não alcançou o bando automaticamente. Ainda não era o tempo de migração dos patos e dos gansos. Nesta altura, só duas espécies eram tão velozes que o maçaricão as não podia ultrapassar sem esforço. Tinham que ser tarambolas-douradas... ou maçaricões-esquimós.
As incansáveis asas bateram-lhe mais depressa. O ar comprimiu-se fortemente contra o seu corpo aerodinâmico. O turbilhão do bando invisível foi-se tornando maior, e era de facto mais forte do que todos os outros que encontrara nessa noite. A sua impaciência cresceu. Uma leve esperança, meio reacção instintiva e meio vago pensamento consciente, agitou-se-lhe no cérebro. Estava iminente o fim desta interminável procura de companheiros da espécie? O maçaricão aumentou a velocidade, até lhe doerem, do esforço, os poderosos tendões do peito, um dos tecidos mais fortes em todo o reino animal.
Aproximou-se do bando. Na escuridão, só agora iam tomando forma as aves que o precediam, primeiro vaga, depois mais claramente. Durante um bom minuto o maçaricão apenas pôde reconhecer a linha desvanecida da sua formação, mas agora via claramente cada uma das aves. Só voadores fortes e rápidos, como os gansos, os maçaricões e as tarambolas-douradas voavam assim, nesta formação em coluna, em diagonal ou em cunha. Através dela, cada ave tirava partido do turbilhão da ponta da asa da ave precedente, sem que fosse perturbada pela esteira de turbulência que ela deixava atrás de si. E o maçaricão sabia que os gansos ainda não voavam para sul. Ficou ainda mais impaciente, voou ainda mais depressa.
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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Hora do folhetim - 10

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Hora após hora voou o maçarico num ritmo poderoso, rápido e regular. Os seus batimentos de asa eram fluentes e leves. Principiavam por baixo do abdómen e abriam-se largamente por cima do dorso. Cada batimento constituía uma complicada sucessão de passos, harmoniosamente ajustados uns aos outros, fundidos, numa fracção de segundo, num elegante movimento único. As asas funcionavam numa combinação perfeita de superfície aerodinâmica e hélice impulsora. O vento desempenhava diversas funções durante o voo.
O plano da asa, junto ao corpo, cortava o ar como a superfície de um avião. Deste modo criava-se pressão no intradorso da asa, daí resultando sustentação, exactamente aquele impulso que possibilita o voo. No maçaricão isso era conseguido apenas através da forma aerodinâmica da asa. O batimento fornecia impulso, mas nada tinha que ver com a sustentação no ar.
A superfície exterior da asa era composta sobretudo por fortes rémiges sobrepostas. Elas eram a hélice do sistema de propulsão da ave, e produziam a corrente de ar que fornecia sustentação aos planos alares, junto ao corpo. Em cada batimento, as rémiges executavam uma complicada sucessão de posições. Quando a asa baixava, elas deviam mover-se do modo seguinte: o bordo de ataque baixava e subia o bordo de fuga, funcionando assim cada pena como pá de uma hélice, que aspirava o ar e criava impulsão. Quando a asa subia, o ângulo de ataque das rémiges tinha que ser ao contrário, assim se criando impulsão suplementar. A superfície alar junto ao corpo produzia continuamente tanto impulso que não se perdia altitude, mesmo quando a asa se movia para cima. A regulação perfeita das penas era um reflexo que não podia ser conscientemente controlado, pois o maçaricão executava três ou quatro batimentos de asa por segundo, o que lhe permitia uma velocidade de oitenta quilómetros por hora.
Ocasionalmente o maçaricão entrava no turbilhão provocado por uma ave que seguia adiante dele. Com as suas asas ultra-sensíveis podia detectar mesmo tão insignificantes vestígios. Por norma, uma leve alteração nas condições aerodinâmicas do voo era o primeiro sinal de que se aproximava de um bando de aves. Quando deparava com tais turbilhões, o maçaricão aproveitava-se deles. Seguia-os, deixando-se arrastar como uma asa pela coluna de ar horizontal. Assim mantinha a impulsão correcta, e as asas podiam funcionar com um pouco menos de esforço.
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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Hora do folhetim - 9

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Lá no alto, por cima de si, o maçaricão ouvia as fracas vozes ciciadas das aves que se dirigiam do Árctico para outras paragens mais quentes. Nas margens dos charcos começavam a formar-se cristais de gelo. O instinto do maçaricão-esquimó proibia-o de voar sozinho. Porém, quando lançou à noite fria um chamamento estridente, ninguém respondeu. E era tempo de partir.
Elevou-se na aragem, procurou encontrar o ângulo mais favorável, com o bordo de ataque das asas levantado e o bordo de fuga descaído, até sentir finalmente a corrente ascendente. Na família das galinholas, o maçaricão tinha as asas mais bem adaptadas a um voo fácil e rápido; eram longas, estreitas, e graciosamente terminadas em ponta. Mesmo quando ficava parado, de asas abertas, no vento suave da noite, era transportado pela aragem como se não tivesse peso. Lançava-se agilmente para o ar com o impulso das pernas, dava duas batidas de asa para obter estabilidade de voo, e elevava-se quase sem esforço. Durante mais de um minuto subiu na vertical, até que a tundra quase desapareceu lá em baixo, no cinzento do crepúsculo. Depois manteve a altitude. A velocidade aumentou, e ele voava com batidas mais leves e mais lentas. O ar sibilava à sua volta e comprimia-lhe as penas contra o corpo. A viagem tinha começado. Mesmo o seu cérebro primitivo e simples sentia vagamente que o caminho indefinido, estendido diante de si através de dois subcontinentes, era um corredor da morte. Nele não havia misericórdia, apenas ameaças de tempestades, de inimigos, da própria morte. No entanto, antes de a tundra inóspita mergulhar na névoa do horizonte, o maçaricão pressentiu levemente que o impulso nupcial voltaria a chamá-lo no próximo ano. Ele havia de voltar a esperar pela sua fêmea, na primavera, quando os musgos e os líquenes do Árctico ficassem verdes outra vez.


O CORREDOR DA MORTE

... Apontamentos de Lucien Mc Shan Turner, até agora não publicados, sobre as aves da baía de Ungava...
Não vi nenhum maçaricão-esquimó, até à manhã do dia 4 de Setembro de 1884, quando estávamos a regressar da foz do rio Koksoak. Um bando enorme, de várias centenas de exemplares, voava em direcção ao sul...

sábado, 7 de novembro de 2009

Hora do folhetim - 8

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Alguns dias mais tarde, a reserva perdera toda a excitação. O maçaricão-esquimó elevou-se no ar e voou um par de horas na direcção do sul. Quando sentiu fome poisou num terreno pantanoso, onde um rio desaguava num grande lago. Vindas da tundra a caminho do sul, chegavam em bando, como todos os verões, as narcejas velhas e novas e os pequenos maçaricos-das-rochas. Pilritos de longas pernas passavam sobre a margem do lago, em oscilantes formações em V. Ele parou de comer e soltou um grito excitado. Este modo de voar, estas formações, só podiam ser de maçaricões. Passavam em formação cerrada e moviam-se tão exactamente como se todos eles fossem um corpo, como se um único centro nervoso controlasse todo o bando. Mantinham as asas curvadas para baixo e desciam para o solo em voo planado. O maçaricão-esquimó correu ao seu encontro. Mas, depois de algumas passadas, parou de repente e continuou a comer, indiferente. Os outros eram maçaricões-norte-americanos, e ele reconheceu-os pelos bicos mais curtos e pelas barrigas cor de cabedal.
O maçaricão não sabia que os recém-chegados, muito semelhantes a ele, voavam mais lentamente, e que, por isso mesmo, não eram companheiros de viagem adequados. Também desconhecia que as narcejas jovens só um pouco mais tarde adquiriam força suficiente para a longa viagem, e eram deixadas para trás pelos pais. No entanto elas seguiam-nos instintivamente ao longo da perigosa rota de doze mil quilómetros, que iam fazer pela primeira vez. Os modelos de comportamento, fixados através dos genes de numerosas gerações, apenas diziam ao maçaricão o que ele tinha que fazer, sem lhe esclarecer os motivos. O seu comportamento não era definido por decisões racionais, mas por reacções aos estímulos do ambiente. De bom grado se teria juntado a um bando migratório. Mas os maçaricões-norte-americanos não provocavam nenhuma reacção no seu cérebro, e por isso continuou a procurar alimento, quase sem olhar para eles. Quando levantaram voo mal deu por isso. A terra estava cheia de ruídos de asas em movimento, e o maçaricão ficou de novo só.
Durante a tarde, o pântano ficou salpicado de narcejas que interromperam o voo e esgaravatavam o lodo em busca de alimento. A maior parte mantinha-se agrupada por espécies. E, com a chegada do crepúsculo, os bandos abalaram, um após outro. Só o maçaricão ficou. Os outros comunicavam por pequenos assobios, organizando de novo as suas formações, na escuridão que se instalava. Durante um momento circulavam a mil metros por cima da tundra, depois rompiam para sul. As narcejas migram sempre de noite. Digerem rapidamente, consomem muita energia, e durante o dia têm que procurar alimento. Durante as migrações, o seu alto consumo de energia só pode ser satisfeito através da exacta regulação do tempo de voo. Ele tem de terminar logo que amanhece, mal as aves podem começar a alimentar-se.
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Hora do folhetim - 7

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O ponto alto do ciclo de actividade das glândulas acabava de ser ultrapassado. A produção de hormonas era cada vez menor, e com ela desaparecia lentamente o impulso de acasalamento e a agressividade. Em seu lugar veio uma outra necessidade. Dantes era a defesa da reserva o primeiro mandamento, mesmo mais importante do que a busca de alimento. Agora começava a sentir as primeiras manifestações de um impulso de movimento que não parava. Nenhuma fêmea viera, e a reserva perdera significado.
De vez em quando observava a tarambola-dourada, mas ela não se ia embora. Acabou por deixar de se preocupar com ela e esqueceu-a. Durante um dia deambulou por ali. Às vezes dava-se conta dos intrusos que lhe penetravam na reserva, mas logo se esquecia deles. No dia seguinte outras narcejas chegaram à reserva. Chegavam e partiam, e o maçaricão não lhes ligava qualquer importância. Uma vez voou mesmo um bom bocado pelo rio abaixo, e ficou longe durante um par de horas. Foi a primeira vez que deixou a reserva, desde a sua chegada, há dois meses atrás.
À sua volta as narcejas novas cresciam rapidamente. Os pais abandonavam-nas e elas tinham que fazer pela vida. Era uma separação brusca e total. Pais e filhos formavam, cada um, o seu bando migratório.
O fim de Julho chegou. O pântano fervilhava de insectos e crustáceos, que eram o alimento das narcejas. Havia agora alimento em demasia, e faltavam ainda alguns meses para ao inverno. Mas o Árctico já tinha cumprido o seu papel. E o sul chamava insistentemente, semanas a fio, antes que os bandos de facto se pusessem a caminho. O maçaricão, que durante todo o verão lutara furiosamente por ficar sozinho, ansiava agora por companhia. Isso nada tinha que ver com o pensamento ou com a inteligência. Ele reagia simplesmente ao primitivo modelo de comportamento da espécie, às alterações do ciclo fisiológico. Os dias eram cada vez mais curtos, o sol cada vez mais fraco, e com isso reduzia-se também a actividade da hipófise. As hormonas da hipófise estimulavam as gónadas a derramar hormonas sexuais na corrente sanguínea. E agora, ao reduzir-se a produção de hormonas sexuais, desaparecia o agressivo impulso de acasalamento, substituído pelo instinto migratório. Era apenas um processo fisiológico. O maçaricão não tinha consciência de que o inverno ia chegar ao Árctico, e de que morreria à fome quem se alimentava de insectos e ali permanecesse. Ele conhecia apenas a irresistível força que agora o obrigava a migrar.
Porém, algures no seu cérebro rudimentar, esboçava-se um elementar processo de pensamento. Por que razão estava sempre sozinho? Onde paravam as fêmeas que o seu instinto lhe prometia em cada primavera, quando o fogo nupcial ardia em todas as suas células? Nesta altura, as outras aves juntavam-se em bandos migratórios. Mas por que motivo não havia, entre as miríades de narcejas e outras espécies de maçaricos, nenhuma outra com a penugem castanha mais clara, que ele prontamente reconheceria como irmã de casta?
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domingo, 1 de novembro de 2009

Hora do folhetim - 6

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2
Os dias quentes e as noites frescas passaram com a rapidez do vento, os montes de neve desapareceram das depressões escuras do terreno, e as sóbrias tonalidades cinzentas da paisagem da tundra transformaram-se num flamejante tapete de flores amarelas e rosadas. Mas a fêmea do maçaricão não chegou. As narcejas juntaram-se às centenas, lutaram por uma reserva, acasalaram, fizeram ninhos. Prepararam-se para dar início a um novo ciclo de vida, objectivo pelo qual tinham voado dez ou doze mil quilómetros. O maçaricão lutou como um louco contra as tarambolas, contra qualquer maçarico-das-rochas que atravessasse a fronteira da sua reserva, até esta ficar salpicada das penas castanhas dos intrusos, que demasiado tarde fugiram aos seus ataques. As hormonas do acasalamento, segregadas pelas glândulas, acumulavam-se nele como uma carga explosiva.
O maçaricão lutou contra cada narceja que ousasse chegar-se a ele. Porém, o seu modelo instintivo de comportamento não lhe permitiu ser hostil para com as escrevedeiras, os tentilhões e os lagópodes-brancos, que também povoavam a tundra. Estes não eram biologicamente seus parentes próximos, nem lhe disputavam o alimento de que necessitava para as crias, logo que a fêmea chegasse. Uma fêmea de galo branco fizera o ninho a menos de cinco metros do lugar onde haveria de ficar o seu. Mas o maçaricão mal dera por isso, e após alguns dias já tinha esquecido que ele estava ali.
As noites foram-se tornando maiores e mais escuras. As flores minúsculas e claras da tundra deram lugar a sementes emplumadas, que pareciam tramas de seda. Muito perto, um par excitado de tarambolas-douradas começou a gritar. O negro da penugem do papo e da barriga brilhava intensamente aos raios do sol matinal que apareceu lá longe, no horizonte. Então elas começaram a voar em círculos, rapidamente. O maçaricão sabia que as crias já tinham saído da casca. Tinham acabado de deixar o ninho, bem desenvolvidas desde o início, como todas as narcejas. E agora corriam ali à volta, antes de secarem completamente as cascas do ovo que as tinha protegido. O verão polar ia chegando ao fim.
Várias crias aveludadas corriam pela reserva do maçaricão, atrás da mãe que trazia comida. Este lançou um assobio de aviso na sua direcção e investiu contra elas. As crias gritaram pela mãe, e isso teve sobre ela mais efeito do que o medo de uma ave estranha e muito maior. A fêmea não fugiu. Ficou parada e abriu as asas protectoras sobre as minúsculas bolas de penas que piavam, agachadas no tapete de musgo. O maçaricão levantou voo sem se dirigir a elas, e não voltou a atacá-las. Planou trinta metros até um monte de rochas onde poisou, observou durante um momento como ela alimentava os filhos e esqueceu-os.
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segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Simplesmente uma ideia

Introdução
S. Pedro do Rio Seco é, actualmente, uma aldeia com poucos habitantes e com média etária elevada o que significa que os jovens foram procurando outras paragens que respondessem aos anseios num movimento migratório que vem de há muito anos.
O livro “S. Pedro do Rio Seco - Contribuição para uma Monografia” de José da Fonseca Ramos, no Cap. IV “O Crescimento da nossa Terra – Evolução da População” dá-nos conta dessa evolução numérica ao longo da história documentada.
Por essa obra ficamos a saber que S. Pedro foi, durante muitos anos, a freguesia mais populosa do concelho (falamos do concelho de Castelo Bom ao qual S. Pedro pertenceu até ao ano de 1834) e que a construção da linha férrea até Vilar formoso passando também por Freineda rapidamente alterou o número de habitantes a favor destas duas freguesias. O incremento da oferta de trabalho e comércio que este facto trouxe bastou para fixar mais pessoas.

A agricultura representou, desde sempre, a principal actividade das populações das aldeias do interior como S. Pedro. Havia outras como sapateiro, barbeiro, carpinteiro, moleiro…, que não dispensavam a simultaneidade da actividade agrícola necessária como complemento de subsistência. O contrabando para o país vizinho, aproveitando o factor vizinhança, também trazia algumas benesses.
A fraca produtividade agrícola, devido à pobreza dos solos por um lado e à sempre ausente reestruturação fundiária por outro, com os terrenos, de geração em geração, sucessivamente divididos, não trazia a resposta que as famílias ansiavam.
O movimento migratório foi a resposta natural. Primeiro para as Américas, África e Europa depois. Os grandes centros urbanos do continente iam acolhendo também muitos jovens..
E por esta rampa foi escorregando a população de S. Pedro!

Recentemente, falo num intervalo de poucos anos, algumas iniciativas puseram esta rampa menos inclinada: O Centro Social, alguns melhoramentos como jardinagem e arborização, arruamentos, a construção da ETAR, aquisição de máquinas em associação com outras freguesias do concelho, a dotação recente do importante pavilhão polivalente, etc., têm dado emprego que, para uma pequena freguesia como S. Pedro, tem tradução importante na fixação das pessoas.
Por outro lado, melhores meios de comunicação (o automóvel tornou-se um meio de transporte mais acessível), deixaram as pequenas aldeias como S. Pedro menos isoladas e permite à população activa conseguir empregos noutras terras regressando à aldeia no fim do dia de trabalho.
A agricultura perdeu a importância que tinha e é, actualmente, uma actividade com grandes dificuldades. A construção civil, alguns empregos na pequena indústria e serviços completam as actividades que dão ocupação.

S. Pedro do Rio Seco sempre foi uma aldeia bonita e harmoniosa, mesmo tirando a avaliação suspeita de quem nela nasceu. É também a opinião de muitas pessoas que a visitam e que sem favor assim a classificam. A mais valia que foi adquirindo com algumas obras recentes da iniciativa da Junta de Freguesia e Câmara Municipal tornaram-na ainda mais acolhedora. Aos melhoramentos já referidos acrescentemos também:
- Melhoria das vias de comunicação.
- Instalação de água ao domicílio
- Rede de saneamento e ETAR
- Beneficiação de monumentos (igreja, capela, fonte romana, chafarizes)
- Identificação e sinalização de importantes testemunhos do passado como as sepulturas
antropomórficas, lagar romano e cruzeiros (estes de tipo religioso).
A recuperação de casas por iniciativa dos seus proprietários tem trazido também uma importante valorização à aldeia.

S. Pedro do Rio Seco é, podemos afirmá-lo, uma aldeia bonita, harmoniosa, com condições para acolher quem a queira visitar.

Área rural

Falámos apenas da aldeia dentro dos seus limites urbanos.

Mas S. Pedro tem também uma importante área rural, com uma paisagem atractiva e rica em biodiversidade.
Refiro-me a alguns milhares de hectares de um planalto ligeiramente ondulado com terrenos cerealíferos e pastagens, que a floresta, do tipo pequeno bosque, tem vindo a conquistar mas onde se mantêm largas clareiras que constituem um habitat que dá suporte a vários e importantes nichos ecológicos. A sua área é atravessada por duas linhas de água, o Rio Seco e Ribeira dos Toirões, com caudal de água pouco significativo mas elevada influência ambiental e dinâmica de algumas populações zoológicas e botânicas.
Também a geologia se manifesta com beleza. Há rochedos graníticos, os barrocos, moldados com a beleza que só os elementos souberam fazer com a paciência de milhões de anos. Alguns são mesmo emblemáticos (chamemos-lhes assim) como é o caso do barroco basculante, que com as largas toneladas de peso pode ser oscilado com a força de uma ou duas pessoas! Há também uma área com predominância de quartzo rosado, que de onde em onde se apresenta com bonitos cristais.

Esta área rural é a continuidade geográfica do Parque Natural do Douro Internacional (fica a uma escassa dezena de quilómetros), com características de biodiversidade de igual continuidade.
Vejamos algumas espécies que utilizam este habitat:

1 – Aves

Largas dezenas de espécies de aves nidificam neste território; algumas raras e por isso com classificação apropriada na legislação específica para as aves. É o caso da abetarda, da cegonha negra, do pirolis… Sem a classificação de raras mas que poucas vezes se observam noutras áreas do território nacional e nunca nas zonas urbana como é o caso das cidades, refiram-se, entre outras, os abutres (abutre negro, o grifo, o abutre do Egipto) aves de rapina (milhafre real, milhafre negro, falcão, águias, peneireiros, mochos, corujas, noitibós). Também fazem parte deste habitat algumas com grande beleza das suas penas e por isso não será exagero classificá-las como exóticas. É o caso da poupa, abelharuco, duas subespécies de pica-paus, o papa-figos conhecido localmente como marintéu, o raro e fugidio guarda-rios, o picanço barreto, etc.
O pato-real, galinha de água, a garça-real e as cegonhas, branca e a negra são as aves que na época de reprodução podemos observar garantidamente nas ribeiras e nas charcas.
Quanto a andorinhas podem ser observadas, pelo menos, três subespécies: andorinha dos beirais, a mais comum, andorinha das rochas e a andorinha dáurica esta rara e da qual apenas se conhece um ninho localizado junto à Ribeira dos Toirões.

Foto 1 – Ninho de andorinha dáurica

2 – Mamíferos carnívoros:

Doninha, geneta, toirão, papalva, texugo, gato-bravo, raposa e lontra.
A lontra tem como limite territorial uma altitude à volta dos 750m, atingindo nesta zona esse limite.

3 - Répteis, anfíbios e insectos com destaque especial para algumas espécies raras de escaravelhos.

4 – Animais domésticos:

Vacas, ovelhas, cabras, burros, cavalos, galinhas…

Foto 2 – Gado vacum


Uma visita a S. Pedro do Rio Seco

1 – Vista geral á aldeia com visita da igreja e fonte romana

2 – Passeio rural

Podem ser propostos vários circuitos. Apresenta-se apenas um como exemplo.

Circuito 1

- Início: Junto ao cruzeiro ao Chorro
- 400 m depois: sepulturas antropomórficas.
- Carcidade: local onde provavelmente a aldeia “nasceu”
- 200 m depois virar á direita na direcção do Vale das Devesas onde se podem observar mais sepulturas.
- seguir para Nave Rodrigo até à ponte

Foto 3 – Ponte de nave Rodrigo

- Atravessar a Ribeira e seguir até à raia atravessando uma área onde não é permitido caçar.
- seguir na direcção da “caseta” até à Ponte Pequena na Ribeira dos Toirões.

Foto 4 – Ponte pequena

- regressar pela Salgueirinha, Casa Sola, e novamente Carcidade.

O que pode ser realçado neste circuito:

1 – Sepulturas antropomórficas
2- Formações graníticas, algumas com características curiosas como o rochedo basculante, já mencionado.
3 – Botânica:
carvalho negral
carvalho Cercal (raro nesta zona)
carvalho alvarinho (raro nesta Zona)
freixo
pinheiro bravo
salgueiro
sabugueiro
etc.
Árvores de fruto:
Macieiras, pereiras, cerejeiras, ameixieiras, figueiras, marmeleiros…

Arbustos:
Giesta branca e giesta amarela, rosmaninho, bela luz, tojo, espinheiro…
Hortas: identificar plantas e produtos hortícolas
Foto 5 - Horta

Zoologia:
Aves diversas, dependendo da época do ano
Alguns ninhos:

Foto 6 – Ninho de cotovia; o ovo de cor diferente é de cuco.

Foto 7 – Ninho de pega azul com juvenis(primavera 2009)


Foto 8 – Ninho de perdiz (primavera 2009)



Répteis
Grande variedade de insecto

(os mamíferos carnívoros, por terem uma actividade quase exclusivamente nocturna dificilmente se deixam observar durante o dia exceptuando nas horas crepusculares.

È exigido a não perturbação do meio.

Os circuitos podem ser valorizados com algumas estruturas pouco dispendiosas de que se dão alguns exemplos fotográficos:
foto 9 – Local de observação

Foto 10 – identificação de espécies botânicas. (exemplo típico)

Obras de valorização ambiental

1 – Pequenas represas de água a construir no Rio Seco e Ribeira dos Toirões, aprovadas pelas entidades hidráulicas competentes de forma a garantir, equilíbrio ambiental, que garantam caudais ecológicos e não constituíam barreiras intransponíveis, autênticos garrotes para a vida aquática.

Estas estruturas, a construir a prazo, acrescentariam as seguintes vantagens:
– Dinâmica nas populações aquáticas permitindo um eventual repovoamento com peixes, bivalves de água doce e aves.
- Embelezamento
- suavização do clima

2 – Construção de estruturas de observação se tal se mostrasse necessário.


O circuito aqui “desenhado” que se dirige mais especificamente a pessoas que gostam de “viver” um dia de campo, não é o único objectivo desta modesta ideia. Pode responder também a estudos académicos no âmbito das ciências biológicas, geológicas ou sociais para as quais não falta campo laboratorial.

Conclusão

Nos tempos que correm, é notoriamente crescente o número de pessoas que se sentem bem em contacto com a natureza e por isso se evadem dos grandes centros urbanos onde vivem rodeados de multidões mas quantas vezes bem sós, e procuram, quase sempre em pequenos grupos, lugares rurais, bem longe dos semáforos, do stressante atravessar a rua, das intermináveis filas de automóveis para ir e vir do trabalho, ver o telejornal e telenovela, com repetição no dia seguinte.

E as notícias, em regra, não são boas. Falam do aquecimento global com desaparecimento da calote polar e deixa-nos um pouco perturbados embora pensemos que isso não nos vai tocar a nós quando muito ao vizinho do lado. Vemos cheias e secas onde, dizem, antigamente não havia. Falam-nos da falta de água para consumo, para a agricultura e para produzir electricidade. Olhamos pela janela e perguntamos quanto tempo vai durar o petróleo que alimenta aquela fila de automóveis e a chaminé da fábrica que se vê ao longe.

Há uma crescente onda de preocupação que nos arrasta para a necessidade de mudança, para uma sociedade de transição.

Este pequeno projecto pretende ser o contributo de uma pequena comunidade como é S. Pedro do Rio Seco para responder aquelas pessoas que pretendem evadir-se da cidade, aquelas que querem a mudança, a transição.

AC

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 5

(...)
O CORREDOR DA MORTE

SESSÕES FILOSÓFICAS DA REAL SOCIEDADE DE LONDRES
nas quais se referem as actuais acções, estudos e obras de
investigadores, em muitas e importantes partes do mundo.
Vol. LXII do ano de 1772.

ARTIGO XXIX
Relato sobre aves, comunicado a partir da baía do Hudson. Contém observações sobre a sua história natural, assim como descrições latinas de algumas das espécies mais invulgares. Do sr. Reinhold Forster, membro da Real Sociedade.
Antes da construção da manufactura da baía do Hudson, foi oferecida à Real Sociedade uma grande colecção de invulgares quadrúpedes, aves, peixes, etc, incluindo um catálogo dos seus nomes, locais de permanência, hábitos e modos de vida. Isto através do sr. Graham, que pertence à colónia de Seven River. Os gerentes da companhia da baía do Hudson forneceram as indicações mais corteses, por forma a que estas notícias pudessem ser completadas de tempos a tempos.
(Uma vez que todas as aves descritas pelo sr. Forster têm entrada, sob idêntica designação, nos livros de ornitologia do sr. Latham, não se torna necessário fornecer aqui as descrições latinas).
1. Falco columbarius. Esmerilhão-comum. Ave de arribação.
2. ...
3. ...
18. Espécie nova. Scolopax borealis. Maçaricão-esquimó. Esta espécie de maçarico é até hoje desconhecida dos ornitólogos, e é mencionada pela primeira vez na Faunula Americae Septentrionalis, ou no catálogo da fauna norte-americana. Os indígenas chamam-no “wee-kee-me-nase-su”. Procura alimento nos pântanos, comendo vermes, minhocas, etc. Passa por Fort Albany em Abril ou no princípio de Maio. Nidifica no norte, regressa em Agosto, e migra para o sul, em bandos gigantescos, nos finais de Setembro.

(...)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 4

(...)
Duas espécies de maçaricões nidificam na tundra árctica: o esquimó e o norte-americano, que é mais abundante e um pouco maior. Na extensa família das narcejas, dos maçaricos-das-rochas e das tarambolas, são eles que têm as pernas e os bicos mais compridos. E, tratando-se embora de duas espécies diferentes, dificilmente se distinguem pelo aspecto exterior.
O dia árctico era longo. E, apesar do vento fresco que corria sobre a tundra, a atmosfera mantinha-se quente e húmida. O maçaricão esgaravatou o solo pantanoso em busca de alimento, e depois regressou à guarda da reserva, observando atentamente o horizonte plano. Pouco antes do meio-dia surgiu ao longe, do norte, um búteo-calçado. Descreveu círculos sobre o rio e atacou um pequeno roedor descuidado que se aventurou no musgo. Aos poucos, o grande caçador aproximou-se da reserva, e o maçaricão observou-o, temeroso. Finalmente o búteo atravessou a fronteira. Embora não marcada no solo, ela estava perfeitamente definida no cérebro do maçaricão. E logo este levantou voo e iniciou uma veloz perseguição. As suas asas batiam fortemente, e, quando se aproximou do intruso, cujo corpo era dez vezes mais pesado que o seu, soltou da garganta um grito de aviso agudo e estridente.
Durante alguns segundos o búteo não deu qualquer atenção aos gritos de ameaça. Depois rodou para norte e partiu sem luta. Teria podido matar o maçarico com um simples golpe de garras. Mas só matava quando precisava de alimento, e voluntariamente deixou o campo livre a uma ave que o fogo do acasalamento havia tornado tão insensata.
O sol pôs-se entretanto, mas a vista não se desvaneceu. E, como um véu, a noite árctica desceu pela primeira vez sobre o maçaricão. Depressa a tundra arrefeceu, e parou de repente o vento que uivara durante todo o dia. Seguiu-se uma atmosfera de penumbra, que não era propriamente escuridão.
Por um impulso instintivo que ele não entendia, o maçaricão sentiu-se atraído para o monte seco de rochas, em cuja base se achava o tapete de musgo que havia de abrigar o ninho. Este era o seu quinto verão e ele nunca tivera um ninho, nem uma vez sequer avistara uma fêmea da sua espécie. Só vagamente se lembrava do ninho e da mãe, no seu tempo de infância. Mas sabia, sem o ter aprendido, como se corteja uma fêmea e como se faz um ninho, como se isso viesse duma vida anterior.
Agora dormia, apoiado numa só perna e com o bico escondido nas penas do dorso. Dormia ao lado das rochas. Em breve o ninho estaria ali, era o que o instinto lhe dizia. Amanhã ou depois chegaria a fêmea, pois o curto ciclo da vida no Árctico não permitia demoras.
(...)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 3

(...)
O maçaricão levantou voo, elevou-se lentamente e circulou em volta dos dois acres de terreno, com uma grande mancha de água e musgo, que demarcara como reserva. Por vezes, enquanto planava lentamente de asas abertas, fazia ressoar o seu canto nupcial, um gorgeio baixo e prolongado. Mas não havia no seu cantar qualquer jovialidade. Era antes um grito de guerra, um aviso a todos os que pudessem ouvi-lo: a reserva tinha um dono, a arder no fogo do acasalamento. Nada o atemorizava, e defendia a reserva para a sua fêmea, que havia de chegar.
Conhecia cada rocha, cada banco de cascalho, cada charco, cada arbusto da sua reserva. Embora em tanta aspereza e solidão não houvesse nada de notável, que pudesse servir de demarcação. A fronteira norte e oeste era formada pela curva do rio que avistara lá de cima, e os outros limites não eram muito acentuados. Apenas alguns blocos de granito espalhados pelo chão, nos quais brilhavam reflexos de pirite e de mica, um par de galhos de bétula e amieiro e algumas manchas de água castanha. Mas o maçaricão sabia exactamente onde terminava a sua reserva. Quase ao meio havia um montão de rochas. De tal modo seco que, em dez mil anos, desde que os glaciares tinham recuado, nem musgos nem líquenes tinham podido fixar-se nele. Porém, logo abaixo, onde se juntava a água escorrente, o tapete era espesso e exuberante. E seria aí, numa almofada de musgo, que a fêmea procuraria um lugar, escavaria um ninho achatado, em forma de prato. Cerca-lo-ia de folhas e ervas frescas, e nele havia de pôr os quatro ovos cor de azeitona.
O maçaricão voou em círculos cada vez mais altos e o seu canto nupcial tornou-se mais repetitivo e urgente. Subitamente parou, e o canto transformou-se num grito gárrulo e febril. Lá longe, a montante do rio, mancha castanha no céu acinzentado, voava uma outra ave em direcção ao norte, e o maçaricão reconheceu-a como membro da espécie. Esperou, pairando sobre a reserva em círculos cada vez mais apertados, e a outra ave aproximou-se. A fêmea vinha aí. Os três verões que o macho passara sozinho, esperando em vão, eram uma lembrança vaga e desagradável. Mas agora ela tinha desaparecido do seu cérebro tão poderosamente determinado por reacções instintivas, que apenas um pequeno espaço restava para a memória e a reflexão consciente. O instinto dominava-o completamente ao elevar-se na espiral do voo nupcial, não já com as poderosas batidas de asa habituais, mas esvoaçando como uma borboleta. Chegado ao ponto mais alto, deixou-se cair de novo, silvou de encontro ao solo, recuperou baixo sobre a tundra e voltou a subir.
A outra ave escutou-lhe o grito selvagem, mudou de direcção, veio velozmente ao seu encontro. Obedecendo instintivamente às leis da reserva, que todas as aves conhecem, a fêmea poisou numa rocha musgosa, situada um bom pedaço fora da reserva do macho. Excitado, ele ardia em paixão. Numa sequência rápida efectuou ainda várias danças nupciais, subiu no ar ruidosamente até quase desaparecer da vista, desceu de novo em picada violenta, e de cada vez quase roçou o solo. Durante alguns minutos, a fêmea alisou indiferentemente as penas, sem dar atenção a estas demonstrações amorosas. Depois correu e voou sobre o terreno, alternando rápidas batidas de asa com passadas febris. Entrou na reserva e baixou-se, submissa, ao chegar perto do macho. Este soltou um assobio estridente e subiu na vertical para um último voo, pairou lá no alto sobre ela, deixou-se cair como um meteoro e poisou a cerca de dois metros de distância. Ficou parado por um momento, eriçou as penas, esticou o pescoço e caminhou para ela. Porém, a cerca de um metro, parou subitamente. Emudeceram os sons meigos de ternura que até ali lhe saíam da garganta, e em seu lugar ecoou uma rápida sequência de gritos de advertência. O comportamento humilde e submisso da fêmea também se modificou. De súbito pôs-se de pé e afastou-se. O macho já não a cortejava, baixou a cabeça como um galo de combate e investiu contra ela. A fêmea desviou-se e atirou-se para o ar. Ele seguiu-a, aos gritos, ameaçando-a com o bico repetidas vezes.
O impulso nupcial do maçaricão-esquimó transformou-se de repente em fúria agressiva. A fêmea era uma intrusa, em vez de uma companheira. De perto, ele reconheceu a sua penugem mais escura e a sua postura diferente. Embora bastante semelhante, era um maçaricão da espécie norte-americana. Ele sabia, por reacções instintivas, criadas pela natureza para evitar acasalamentos estéreis entre espécies diversas, que não se tratava da fêmea que aguardava. Afugentou-a durante meio quilómetro, com uma fúria tão apaixonada como o seu amor alguns segundos antes. Depois voltou à reserva e continuou à espera. A sua fêmea chegaria em breve.
(...)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Andorinha de transição

[clique!]

Chegou a Almendra já tarde e vinha esbaforida. Da viagem migratória, de tanto pensar na crise que se globalizou, no clima descontrolado, no consumismo doente, no crescimento contínuo.
Recusou fazer o ninho no beiral suburbano, e logo reparou naquela porta. É certo que a estrada ao lado vai cheia de camiões, motocicletas, burros que puxam carroças. E peões que vão tomar café ali em frente.
Talvez seja um bom lugar para avançar com a transição.

Hora do folhetim - 2

(...)
Na exaltação do regresso a casa, o maçaricão mal se lembra de que ficou assim, misteriosamente sozinho, durante três longos verões. Insaciado, o fogo do acasalamento acabou por se extinguir por si próprio, depois de ele ter ficado longas semanas solitário. Inexplicavelmente nenhuma fêmea veio ao seu encontro. Porém, dominado pelo instinto, o cérebro do maçaricão não sabia, nem perguntou porquê.
Voara dez horas sem descanso, e agora o corpo pedia-lhe alimento com urgência. A pulsação rápida e os processos metabólicos, que durante longas horas tinham mantido os poderosos músculos das asas em movimento, pediam muita energia. Começou a remexer a lama com o longo bico. Era um bico singular, adequado a este modo de procurar alimento. Tinha mais de seis centímetros de comprimento e era encurvado para baixo, à maneira de uma foice. O maçaricão abria-o levemente e arrastava na lama a ponta delicada, em pequenos movimentos circulares, para tactear as larvas moles de insectos e crustáceos. Era um processo muito rápido, e o bico entrava e saía da lama tão depressa como a agulha de uma máquina de costura.
Nas zonas baixas havia ainda acumulações cinzentas de neve, mas o sol brilhava quente e o Árctico palpitava já de vida. Havia alimento abundante, e o maçaricão comeu mais de uma hora sem interrupção, até o papo lhe ficar grotescamente inchado, na raiz do pescoço. Depois caiu em sonolência. Firmado sobre uma única perna, manteve o pescoço virado para trás e o bico enterrado nas penas do dorso. Era mais descanso do que sono. Os ouvidos e o único olho descoberto permaneciam incansavelmente atentos às raposas e às corujas polares, que se aproximavam como fantasmas. No seu corpo, os processos metabólicos desenvolviam-se rapidamente, e meia hora de descanso equilibrou a perda de energia do voo de dez horas. O maçaricão estava completamente restabelecido.
O verão polar era curto, e havia muito que fazer quando a fêmea chegasse. O maçaricão voou até uma elevação rochosa que se erguia a cerca de um metro do solo, poisou e olhou à volta. Voara catorze mil quilómetros para atingir esta terra inóspita, áspera e escalvada. Uma região pelada, vazia. Bétulas e salgueiros, curvos e deformados, tinham resistido às tempestades e ao frio do longo inverno. Durante decénios apenas lesmas rastejaram sobre eles, e não tinham crescido mais de quarenta ou cinquenta centímetros. A fronteira onde a floresta subpolar de pinheiros se tornava mais escassa, e onde começava a tundra norte-americana, encontrava-se oitocentos quilómetros mais a sul.
Em geral a terra era plana e húmida, tão salpicada de charcos pantanosos que agora, na primavera, ficava metade debaixo de água. Os pequenos montes de cascalho e os afloramentos rochosos que represavam os charcos e os impediam de transbordar, formando um imenso mar pouco profundo, estavam agora revestidos de espessos tapetes de musgos e líquenes, que reverdeciam muito rapidamente. Alguns centímetros mais fundo encontrava-se o gelo eterno, duro como a blindagem dum navio de guerra, as fundações geladas da terra.
(...)

domingo, 11 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 1



A beleza e o espírito de uma obra de arte podem ser reproduzidos, mesmo depois de ela ter sido destruída. Uma harmonia desaparecida pode inspirar de novo os criadores. Porém, se o que estiver em causa for uma espécie de seres vivos, terão que passar céu e terra, antes que ela possa voltar a existir.
C. William Beebe, “A ave. Forma e função.”


1

Em Junho a noite do Árctico é muito curta, pouco mais que um intermezzo de penumbra cinzenta. Durante os longos dias, nuvens de mosquitos enxameiam das valas profundas, como cortinas de fumo, sob o degelo da tundra.
Antigamente, nesta época do ano, as populações esquimós aguardavam aqui o doce, fremente e longo trinado dos maçaricões-esquimós. Eles regressavam ao Árctico em grande número, trazendo consigo a perspectiva de carne tenra. Mas os grandes bandos já não aparecem. A sua própria lembrança se perdeu, ficando apenas a lenda. Pois o maçaricão-esquimó, primitivamente uma das mais abundantes aves de caça da América do Norte, deixava atrás de si, na primavera e no outono, um verdadeiro corredor da morte. Choviam tiros de todos os lados, e ele foi demasiado lento a aprender o que era essencial à sobrevivência: o medo, perante a espingarda do caçador.
É verdade que a espécie se manteve, mas encontra-se em perigo extremo de extinção. Tal como antes, os poucos maçaricões-esquimós que ainda existem continuam a fazer a sua longa e perigosa migração, desde a Patagónia argentina onde passam o inverno, até às planuras húmidas da tundra, que descem para o mar polar. Aqui procuram a sua fêmea. Mas o Árctico é imenso, e, as mais das vezes, a sua busca é vã. Agora voam sozinhos, os últimos representantes de uma espécie moribunda.


Quando clareou a penumbra da noite sobre o Árctico e mais um dia de Junho começou, primeiro com um vermelho pálido e depois um amarelo vivo, o maçaricão reconheceu finalmente, quase mil metros abaixo de si, a familiar curva do rio, debruada de gelo. Voara nessa noite oitocentos quilómetros através da tundra plana e uniforme, sobre muitas curvas de rios que podiam confundir-se com esta. Porém ele sabia que só agora estava em casa, e sentiu-se esgotado. Tinha as pontas castanhas das rémiges e das tectrizes em desalinho, da marcha migratória que começara abaixo dos trópicos e terminara sobre estas planuras estéreis e escalvadas, após um raivoso voo ininterrupto. O instinto do acasalamento rugia nele.
O maçaricão abriu as asas e deixou-se cair em glissagens laterais. Pedaços de gelo rosados e brilhantes, flutuando no rio acastanhado, aproximavam-se vertiginosamente. Então recuperou da picada e desceu em voo planado até ao chão. Pousou na margem lamacenta dum charco esmaltado, um pouco afastado do rio.
Os maçaricões chegam aqui em Junho, desde há milénios, para defender a reserva e os locais de nidificação. Na tundra desolada aguardam febrilmente as fêmeas, esperando que elas procurem aqui o seu companheiro para este ano. E, durante o tempo de espera, mal conseguem aliviar o instinto de acasalamento nas lutas com os vizinhos, pela defesa da reserva que escolheram.
(...)

Boas-novas - JC4

Felizmente foi possível, com o Manel Alcino, definir no pavilhão um local que parece adequado para apresentar o quadro do Roberto Chichorro e a cabrinha.
Veremos se, no próximo encontro em S. Pedro, ele já estará exposto. Mas tenho que saber do mestre se a exposição à luz de janelas próximas, que não são veladas por cortinas ou persianas, não poderá com o tempo, prejudicar as cores.
JC

sábado, 10 de outubro de 2009

Hora do folhetim 0 - JC3

A hora do folhetim é um intermezzo lúdico e didáctico. Crê-se que vem a propósito, justamente por causa da questão da extinção das espécies.
É a história d'O Último Maçaricão-Esquimó, uma espécie hoje extinta, mas há décadas muito comum na América. Nidificava no Árctico, e passava o inverno no sul da Patagónia. E durante essas migrações gigantescas era o alvo predilecto dos caçadores do Middle-West. Acabou dizimado por eles.
O autor é um biólogo canadiano, Fred Bodsworth, que a publicou em 1954. Não tem edição portuguesa.
Eu tive a sorte de receber a obrinha, no Natal de 1977, duma namorada que tive na Alemanha. Muito mais tarde traduzi-a. A obra, que não a namorada. Porque essa nunca a soube traduzir. A namorada, que não a obra. Agora apresento-a aqui, em fascículos. Prazer e proveito é o que desejo aos leitores.
Contra-capa
Viaja sem descanso, do Árctico para sul, levado pelo desejo de encontrar uma companheira. Luta encarniçadamente com o frio e a neve, com a chuva e os temporais, vence o Atlântico num voo ininterrupto de 60 horas, recobra novas forças no Orinoco e avança, procurando sempre, até à Patagónia.
Mas o verão passa e ele continua sozinho. E quando a esperança já quase lhe morreu aparece a desejada. Saúdam-se, entusiasmados, e iniciam juntos o regresso a casa.
O caminho passa agora sobre as alturas dos Andes, através de nuvens geladas. Mas já não falta muito para chegar ao destino, uma vez que a fêmea, tal como milhares de outras, será vítima dum atirador pérfido.
Ele fica de novo sozinho e percorre assim a última etapa. Instala-se na sua reserva habitual e espera. Será que chega a companheira, ou ele é, realmente, o último maçaricão-esquimó?

domingo, 6 de setembro de 2009

Rio Vivo 6 - JC1

Feito o diagnóstico geral
adoptado o conceito (feliz) de comunidade de transição
chega o momento em que a porca torce o rabo.
O momento da passagem à prática.

Que gestos praticar, que abram caminho a modos de vida alternativos?

Contentêmo-nos (terá acento?) com o facto de que no mundo tudo são processos de longa duração, e a vida de cada um é o mais longo de todos.

Creio que a organização e montagem de rotas de pedestrianismo poderia ir ao encontro dos objectivos da Rio Vivo.
Esta prática está largamente difundida, tem milhares de prosélitos, mas não parece ainda organizada no concelho.

A partir de S. Pedro:
- estabelecimento de percursos pedestres (rotas de contrabando ou outras);
- variante de passeios de burro, a aprofundar, pela logística que implica;
- variante de bicicleta BTT, talvez em ligação com Aldeia de S. Sebastião, onde já existe algo.

A partir de Almeida:
- estabelecimento de percursos pedestres, de dimensão variada, sobretudo integrando a história. Introduzi-la em percursos, sobretudo intra-muros, parece-me corresponder a uma necessidade comum.

Montar uma coisa destas leva tempo, exige contactos locais com pessoas, requer trabalhos de campo.
Pessoalmente não me nego a nada disso. A maior dificuldade está no facto de morar longe. Mas há casos em que, com uma paulada, se matam 2 coelhos. A ver vamos.

JC