sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Hora do folhetim - 37

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Os maçaricões voavam rente à camada de nuvens, ao encontro do pico. Avançavam lenta e penosamente. Voavam de bico aberto, ofegantes no ar rarefeito, e os corpos doíam-lhes.
Ao aproximarem-se do cume o vento refrescou de novo. Farrapos de neve turbilhonavam pela encosta. Evitaram-nos e poisaram, para descansar, numa aresta do penhasco, donde o vento varrera a neve. E de novo tinham que padecer. O ar seco e rarefeito tinha perturbado fortemente o equilíbrio dos seus líquidos. As gargantas ardiam-lhes de sede.
Menos de cem quilómetros adiante floriam exuberantes orquídeas e cactos do verão tardio sul-americano. Mas aqui, no tecto das duas Américas, seis mil metros acima do nível do mar, reinava um inverno sem fim. Mesmo por baixo deles encontrava-se um mundo incerto e medonho. Massas brancas misturavam-se umas nas outras, mal se distinguia onde terminavam os montes nevados e começavam as nuvens. Nenhuma criatura podia manter-se aqui por muito tempo. E apesar disso encontravam-se traços de vida, uma vez que grande parte da falésia era constituída por esqueletos fossilizados de animais marinhos, que tinham vivido há milhões de anos, quando os continentes ainda não existiam, e o cume da montanha era apenas lodo no fundo dos oceanos.
As dores abrandaram e os maçaricões continuaram a voar para oeste, sobre a neve que o vento tinha moldado, através da paisagem livre e vazia da luz clara do sol, sobre as nuvens. Longo tempo continuaram em frente, evitando o manto de nuvens, pelo menos quando não sabiam exactamente o que havia lá por baixo. Atrás deles desapareceu o pico, num véu de neve e neblina. Então abriu-se o tapete de nuvens. A camada contínua e plana deu lugar a fundas depressões de causar vertigens, e a elevadas colunas brancas. Vieram ainda poços maiores, e num deles caíam a pique as paredes sem fundo. Através dele avistaram um planalto arenoso, parecido com um deserto, com manchas verdes e castanhas - cactos e cascalho. Estava quatro ou cinco mil metros abaixo deles, pois a oeste caíam os Andes abruptamente para o Pacífico.

domingo, 19 de setembro de 2010

Planeta-Mãe - 26

REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E ÊXODO RURAL
Reunidos em Londres em 1948, os cinco dirigentes dos países “vencedores” da guerra decidiram sobre a nova imagem que o mundo tomar. Era preciso reconstruir a Europa. Inspirada pelos Estados Unidos, a escolha foi instaurar um novo modelo de sociedade industrial.
A construção desta nova sociedade exigia muito dinheiro. E foi financiada pelos americanos, através do expediente do plano Marshall.
O estabelecimento e funcionamento deste modelo industrial exigia também energia barata: foi o petróleo.
Neste momento da História, a disponibilidade e o preço do petróleo não constituíam preocupação. Os países colonizados ainda se não tinham emancipado. Nós próprios fixávamos o preço da energia, que extraíamos em terra estrangeira. A nossa hegemonia mundial permitia deitar a mão ao essencial dos recursos naturais necessários ao nosso desenvolvimento industrial.
Mas esse desenvolvimento dependia também dum outro recurso: a mão-de-obra. Depois dos 50 milhões de mortos da 2ª Guerra Mundial, dos 2,5 milhões da 1ª, dos 50 a 100 milhões de mortos da pandemia de gripe aviaria de 1918, depois dos anos de fraca natalidade ligada aos conflitos e à grande recessão dos anos 30, eram escassas as forças vivas nos países ocidentais.
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sábado, 11 de setembro de 2010

Pré-história

No princípio era um grupo de caçadores-recolectores. Abrigavam-se em cavernas de cimento, alimentavam-se do que havia à mão.
O aparecimento da horta abriu as portas a outra civilização.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Hora do folhetim - 36

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Pela manhã o vento amainou. O macho sabia que tinham de continuar a voar, não podiam ficar ali mais tempo. Quando as nuvens carregadas de neve se dissolveram e o sol atravessou a névoa com uma luz amarelada, levantaram voo e avançaram para o manto que ocultava os cumes. Um minuto depois encontravam-se num mundo fantástico de neblina branca, cuja humidade lhes pesava nas penas. Subiam penosamente, em círculos. Tinham de ganhar altitude, mas o ar era agora tão rarefeito que pareciam mover-se no vazio. Mesmo com os pulmões cheios, respiravam com dificuldade.
A camada de nuvens era muito instável e cheia de turbulências. Ocasionalmente encontravam camadas de ar mais denso, que as asas cortavam melhor, e ganhavam altitude rapidamente. Mas logo o ar se rarefazia, e, por momentos, mal se podiam manter. Uma vez clareou por cima deles, e o maçaricão sabia que estavam perto de atingir o céu claro. Mas, antes de conseguirem furar as nuvens, uma rajada descendente arrastou-os consigo. Caíram desamparados, e perderam em poucos segundos a altitude que lhes tinha levado muitos minutos a ganhar.
Finalmente deixaram para trás as agitadas camadas de nuvens e voaram através dum céu claro e tranquilo. Era um estranho mundo encantado, de um frio penetrante e uma luz que cegava, e que parecia desligado de tudo o que havia na terra. A camada de nuvens estendia-se por todo o horizonte, uma planície branca, ondulada e vastíssima. Quase parecia sólida bastante para poisarem. O sol reflectia nela o seu brilho intenso. Mil e quinhentos metros adiante deles uma montanha nevada rompia as nuvens. O seu cume era um penhasco nu e inteiriçado. Ao longe havia outros cumes, como ilhas, num mar de brancura.
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Planeta-Mãe - 25

COMO É QUE CHEGÁMOS AQUI?

UM MUNDO MODERNO
O caminho que nos conduziu à situação actual começou a percorrer-se há vários milhares de anos. Em certas regiões do mundo, os homens deixaram de ser caçadores-recolectores. Tendo aprendido a cultivar, tornaram-se sedentários. Estas mudanças do modo de vida alteraram muitas coisas, mormente a nossa maneira de pensar e a nossa relação com a Natureza.
A partir do séc. XIV, o nosso modelo de sociedade expandiu-se progressivamente pelo planeta, graças aos progressos da navegação. Tribos de África e América do Sul, ameríndios, aborígenes da Austrália… o modo de vida ancestral de numerosas populações acabou por desaparecer. E é verdade que os conquistadores ocidentais tinham argumentos convincentes: as armas de fogo.
Mas uma nova mudança de sociedade se impôs no Ocidente, no séc. XX, sempre em ligação com a agricultura e a maneira de se alimentar. Tudo acelerou há somente 50 anos. Desta vez bastaram alguns decénios para mundializar uma nova maneira de viver, de pensar, e de perceber a Natureza.
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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Há quanto tempo não vias...

Isto.

Hora do folhetim - 35

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A luz da manhã caiu sobre um mundo áspero e desolado, sobre uma paisagem que ia crescendo para o céu. Falésias cinzentas e pedaços de nuvens em movimento, que pareciam asas brancas de um vento eterno. E ainda não tinham atingido o ponto mais alto. Os cumes que tinham agora de ultrapassar estavam escondidos atrás de massas de nuvens agitadas. Em nenhum outro lugar do mundo, salvo nos Himalaias, se encontram altitudes tão elevadas.
Mas mesmo aqui viviam insectos, e os maçaricões puseram-se à procura de alimento. Era uma operação lenta e difícil, não por haver pouco alimento, mas porque cada movimento era extenuante, exigindo muito oxigénio, que eles só a custo conseguiam levar à circulação sanguínea. À noite o ar arrefeceu rapidamente. Começou a nevar e eles não reiniciaram o voo. As turbulências atmosféricas e as enormes barreiras de falésias e glaciares só podiam ser ultrapassadas com a luz do dia.
Nessa noite não puderam dormir, e quase não descansaram. O vento rugia estridente contra a parede da falésia e empurrava os duros flocos de neve. Por momentos, as aves mal se puderam resguardar. Então uma poderosa rajada retirou-lhes o chão debaixo dos pés e arremessou-os na escuridão, no medonho vazio do espaço. O macho lutou, defendeu-se, retomou o controle das asas e poisou. Mas a fêmea tinha desaparecido.
Desesperado, tentou gritar mais alto que o rugido da tempestade. O vento não trouxe qualquer resposta, para além dos seus próprios gritos. Quando este amainou o maçaricão levantou voo, descreveu pequenos círculos a baixa altitude, gritou, e procurou, e gritou em vão. O vento cresceu de novo e ele não pôde manter-se em voo. Agarrou-se aos musgos da falésia e esperou, sem respiração. A tempestade amainou por um momento e ele voltou a levantar voo, mas a sua resistência acabou rapidamente. Não podia continuar. Então encontrou um buraco na falésia que o defendeu da tempestade. Encolheu-se lá dentro, arfando, de bido aberto. O corpo precisava de oxigénio. Logo que recuperou forças, voou de novo pela noite escura e bravia, descreveu os seus círculos e gritou pela fêmea. Torturava-o a antiga solidão.
Encontrou-a uma hora depois. Tinha-se escondido da tempestade por baixo duma saliência de xisto, na falésia, e estava tão perturbada e exangue como ele. Encostaram-se um ao outro, e o calor dos corpos derreteu um pequeno círculo de neve dura e granulosa.
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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Planeta-Mãe - 24

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CONCLUSÃO SOBRE O RISCO DE PENÚRIA ALIMENTAR

O QUE É QUE PODERIA EVITAR QUE ELA ACONTEÇA?
Tendo em conta os factores que condicionam a baixa da produtividade, e aqueles que aceleram o aumento da procura, a questão que hoje se coloca, sobre a penúria alimentar, é saber se ainda a podemos evitar.
Para evitar uma crise alimentar generalizada, seriam necessárias mudanças que permitissem inverter radical e rapidamente todos os fenómenos anteriormente descritos. Isto é, mudar radical e rapidamente o regime alimentar e o modo de vida das populações ocidentais, modificando ao mesmo tempo os nossos métodos de cultura à escala do planeta.
Reconverter um campo de milho cultivado quimicamente, num campo de batatas, de nabos ou cenouras, não se faz dum dia para o outro. Mas a sensação de fome começa desde a primeira refeição aligeirada ou adiada.
Esperar que uma parte da população ocidental viva esta situação extrema, para iniciar as mudanças necessárias, expõe-nos a perigos graves. As consequências económicas, sociais e políticas seriam à medida da nossa teimosia, durante os decénios passados.

QUANDO É QUE ELA AMEAÇA CHEGAR?
A esta questão podemos responder que ela já está em curso, uma vez que um bilião de seres humanos vive todos os dias a sensação de fome.
No Ocidente, tem sido graças aos stocks dos anos passados que até agora temos escapado à crise alimentar. Estando os stocks mundiais em baixo, bastará um ano de colheitas calamitosas para que sejamos confrontados com ela. Inversamente, boas colheitas concedem-nos todos os anos um adiamento.

COMO É QUE A CRISE PODE SER DESENCADEADA?
Dois cenários são possíveis. O primeiro exclui qualquer acontecimento excepcional. Neste caso prosseguiriam as tendências de fundo, com repercussões mais ou menos marcadas sobre as colheitas, conforme os anos. As tensões sobre os mercados dos produtos agrícolas subiriam progressivamente. Seriam cada vez mais frequentes as situações críticas, e cada vez mais próximas de nós. A subida dos preços aconteceria lentamente, na continuidade do que conhecemos há alguns anos. Certos alimentos acabariam por faltar, depois outros, etc.
O segundo cenário tem em conta numerosos acontecimentos excepcionais, susceptíveis de acelerar as tendências em curso: fenómenos climáticos maiores, aparecimento de pestes vegetais, ou outras pragas resistentes aos tratamentos, falta de água, epizootias nos estábulos, etc. Neste cenário tudo pode alterar-se em apenas algumas semanas. A explosão dos preços seria então vertiginosa e brutal. A fome poderia afectar uma parte da população ocidental em muito pouco tempo. Estes acontecimentos mais não fariam do que revelar-nos brutalmente as consequências dos nossos actos passados.

INTERDEPENDÊNCIA
Interdependência e interacção são também princípios aplicáveis às causas acima descritas. Por exemplo, as faltas de água, as grandes amplitudes térmicas ou as chuvas fortes, têm sobre os rendimentos um impacto não só directo, mas também indirecto. Criam circunstâncias propícias ao desenvolvimento de doenças.
A interacção dos fenómenos aplica-se a uma escala global. Outros factores, aparentemente estranhos à actividade agrícola, podem desempenhar um papel maior na evolução das tendências em curso. A crise financeira, ou as tensões internacionais que perturbem as trocas comerciais, são apenas dois exemplos. Mais surpreendente ainda, uma pandemia mundial de gripe, suína ou aviária, teria impacto nos mercados sobre a procura: os consumidores voltar-se-iam certamente para os cereais, em detrimento da carne.
Tendo em conta estas regras de interdependência, não seria surpreendente se tudo acontecesse ao mesmo tempo.

QUE FAZER?
No tratamento duma doença, o diagnóstico dos sintomas é apenas uma primeira etapa. Pode a terapia contentar-se com o tratamento dos sintomas, sem correr o risco de recidivas crónicas? Ir à raiz dos males e identificar as suas causas profundas é a etapa que deveria seguir qualquer diagnóstico.
Relativamente à ameaça de penúria alimentar, antes de propor soluções aplicáveis à escala individual, uma outra questão se impõe: como é que chegámos aqui?
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