terça-feira, 24 de agosto de 2010

Hora do folhetim - 34

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A rota do norte diferia da rota do sul. Deixaram para trás as Pampas e a zona dos ventos de oeste. Agora tinham por diante as regiões florestais do norte da Argentina, onde não era fácil encontrar comida. Oitocentos quilómetros a oeste ficava o Pacífico e as suas praias, mas pelo meio elevava-se a cadeia montanhosa dos Andes. Chegaram à zona dos ventos alísios de sueste. Para terem vento de lado, teriam que voar para nordeste ou para oeste. Podiam escolher entre as infindáveis selvas do Brasil, nas quais, em 2500 quilómetros, quase não havia alimento nem lugar onde poisar, e as alturas dos Andes, com a sua atmosfera instável e rarefeita. O maçaricão dirigiu-se instintivamente para oeste.
Durante uma noite inteira voaram sobre contrafortes montanhosos cada vez mais altos. Hora após hora foram subindo, até as asas vibrarem de cansaço. De manhã poisaram num planalto coberto de erva densa. A terra ondeava sem fim diante deles, ondeava subindo, até onde a vista alcançava. O horizonte parecia uma folha de serra. Nuvens brancas e cumes nevados fundiam-se uns nos outros.
Logo que o sol mergulhou atrás dos Andes, os maçaricões reiniciaram o voo. Avançavam lenta e penosamente, uma vez que tinham de ir subindo sempre. O ar tornara-se mais rarefeito, oferecia menos sustentação às asas e menos oxigénio aos pulmões sobrecarregados. Eles eram aves de planície, e não possuíam os enormes pulmões que possibilitam a vida a cinco mil metros de altitude, como os lamas peludos e os seus pastores índios. Em breve ficaram cansados. Algumas horas antes do amanhecer poisaram, esgotados, na saliência duma falésia. Uma escassa camada de líquenes e musgos tinha-se agarrado à rocha. Descansaram o resto da noite encostados um ao outro, defendendo-se das rajadas do vento frio.
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Planeta-Mãe - 23

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A especulação bolsista
Ela antecipa, acelera e amplifica as tendências económicas que se perfilam. Se a ameaça de penúria alimentar se manifestar num contexto de crise económica, a especulação sobre os produtos agrícolas pode atingir a desmesura.
O que é que procuram os investidores? Um suporte seguro e rentável onde possam colocar o seu dinheiro. E qual é o seu objectivo? Fazer frutificar o capital, quer dizer, ganhar dinheiro com o seu dinheiro. Como fazer? Comprar, por exemplo, acções duma companhia que lhes traga dividendos. Sendo muito procuradas as acções de sociedades rentáveis e generosas em dividendos, o seu valor em bolsa aumenta. Este aumento de valor permite então criar mais-valias, em caso de revenda das acções. “Comprar em baixa e revender em alta” é a palavra de ordem.
Quando as perspectivas de rentabilidade das empresas se tornam sombrias, os investidores voltam-se para outros suportes de investimento, que não as acções. “O que é que posso comprar hoje no mercado, cujo valor tenha fortes possibilidades de aumentar amanhã?” A resposta é: aquilo que corre o risco de se tornar raro. É sabido que tudo o que é raro – e procurado - é caro.
O ouro, cujo valor está ligado à raridade do metal, é muitas vezes um refúgio. O seu valor aumenta significativamente em períodos de crise económica e financeira.
Ameaçados de escassez, os produtos agrícolas poderiam transformar-se em valor- refúgio. Os bens alimentares de base são hoje cotados em bolsa, num mercado mundializado. Os preços do trigo, do arroz, do milho, da soja, do açúcar… flutuam ao sabor da oferta e da procura. Quando a oferta baixa e a procura aumenta, os preços sobem.
Num contexto económico e financeiro em que todos os “papéis” se afundem, a especulação no mercado dos produtos agrícolas pode tomar proporções surrealistas. Tanto mais que estes produtos oferecem uma garantia infalível: mesmo no fundo duma crise económica, os seres humanos não deixam de comer.
Esta especulação permitiria uma vez mais a alguns afortunados registar substanciais mais-valias, sendo a consequência do seu enriquecimento a fome dos mais pobres e desprotegidos. E seria surpreendente que eles tivessem escrúpulos, porque os escrúpulos nunca foram um freio para o funcionamento do sistema capitalista.
Excluindo algumas excepções, como as indústrias de guerra, a redução da actividade económica segue a par com a redução dos efectivos nas empresas. O desemprego é o sintoma social duma escassez de trabalho. Os desempregados não só perdem o salário, mas também o moral. Os que temem a mesma sorte perdem a confiança e duvidam do futuro. Em tal estado de espírito, o momento não é de endividamento e consumo, mas de desendividamento e poupança. Isso abranda ainda mais o consumo, acentuando a recessão. E a crise social torna-se uma causa da crise económica.
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terça-feira, 17 de agosto de 2010

Mexilhão de rio


É este o vilão que desertou da Ribeira de Tourões, e que a Rio Vivo pretende trazer de volta.
"As larvas permanecem fixas à guelras do salmão e da truta (diz-se que também da boga, do escalo, etc). Depois de várias metamorfoses, acaba por se soltar do hospedeiro. (...) Porém, a sua sobrevivência vai depender muito do local onde caia. Se for em zonas poluídas, terá poucas possibilidades de sobreviver. Mas se lhe tocarem em sorte águas de boa qualidade, poderá chegar aos 140 anos".
Terá sido a poluição da Ribeira de Tourões, antes da construção da ETAR de Vilar Formoso, que ditou o seu desaparecimento.
Dado como extinto em 1986, reapareceu nos últimos anos nos rios Cávado, Bessa, Rabaçal, Mente, Tuela, Neiva e Paiva.
Trazer o bicho de novo à ribeira não é tarefa fácil. Mas mais difícil é para quem não sonha.

domingo, 15 de agosto de 2010

Hora do folhetim - 33

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Uma noite, quando um forte vento de oeste soprava sobre os montes junto à costa, voaram como habitualmente terra adentro. Mas desta vez o macho subiu nos ares mais alto do que era costume. Seguiu pelas Pampas adiante, e, quando a escuridão caíu, continuaram a voar. As etapas diárias que tinham percorrido eram curtas, e já não satisfaziam o impulso migratório cada vez mais urgente. Deixaram a costa para trás e voaram para noroeste, na direcção dos Andes. O macho sentiu diminuir a tensão, ao reconhecer, com a primeira noite de voo, que a migração tinha de facto começado.
Voaram durante seis horas e as asas fatigaram-se. Quando poisaram para descansar, era ainda muito escuro. Agora deslocavam-se pouco durante o dia. Mas, logo que o sol se punha, o maçaricão conduzia a fêmea para as alturas do céu e encaminhava-se sempre para noroeste. A cada noite as asas ganhavam força, e, uma semana depois, voaram desde o pôr do sol até à madrugada, sem poisar.
E assim continuaram, o macho sempre à frente e a fêmea um pouco atrás e ao lado, arrastada pelo turbilhão de ar, numa das pontas da asa. Na escuridão falavam continuamente um com o outro, enviavam-se pequenos sinais, um pouco mais fortes do que o rumor do vento cortado pelo voo. E o macho foi esquecendo lentamente a sua antiga solidão de sempre. Encontravam muitas tarambolas. Mas os dois bastavam-se a si próprios, e a sua relação preenchia-os tão completamente que nunca se juntaram a qualquer bando. A maior parte das vezes voavam sozinhos.
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Planeta-Mãe - 22

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Do liberalismo ao proteccionismo
No primeiro semestre de 2008, vários países entre os quais o Vietname, o Egipto, a Índia ou o Cazaquistão anunciaram a redução ou a supressão das suas exportações de cereais. Estas decisões políticas fizeram baixar a oferta nos mercados mundiais.
Tais decisões puseram em evidência os limites dum sistema baseado na livre troca à escala mundial. As noções de abertura e de partilha comum das riquezas não pesam muito numa situação difícil. Nos anos 30, que foram um período de grande depressão económica, o gesto “cada um por si” fez lei, mesmo à escala dos estados.
As relações internacionais foram então fortemente perturbadas por uma guerra comercial, a dos direitos aduaneiros. A corrente de pensamento ultra-liberal nasceu deste medo do proteccionismo. E o medo é mau conselheiro. Hoje são os limites e os excessos do liberalismo mundializado que fazem renascer as tendências proteccionistas.
A história mostra que os conflitos económicos e comerciais entre estados, quando tocam nos fundamentos da vida económica de cada país, quase sempre conduziram a conflitos armados. Saberemos nós escapar a estes extremos, se os litígios assentarem no acesso das populações aos recursos alimentares mundiais?
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