segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Simplesmente uma ideia

Introdução
S. Pedro do Rio Seco é, actualmente, uma aldeia com poucos habitantes e com média etária elevada o que significa que os jovens foram procurando outras paragens que respondessem aos anseios num movimento migratório que vem de há muito anos.
O livro “S. Pedro do Rio Seco - Contribuição para uma Monografia” de José da Fonseca Ramos, no Cap. IV “O Crescimento da nossa Terra – Evolução da População” dá-nos conta dessa evolução numérica ao longo da história documentada.
Por essa obra ficamos a saber que S. Pedro foi, durante muitos anos, a freguesia mais populosa do concelho (falamos do concelho de Castelo Bom ao qual S. Pedro pertenceu até ao ano de 1834) e que a construção da linha férrea até Vilar formoso passando também por Freineda rapidamente alterou o número de habitantes a favor destas duas freguesias. O incremento da oferta de trabalho e comércio que este facto trouxe bastou para fixar mais pessoas.

A agricultura representou, desde sempre, a principal actividade das populações das aldeias do interior como S. Pedro. Havia outras como sapateiro, barbeiro, carpinteiro, moleiro…, que não dispensavam a simultaneidade da actividade agrícola necessária como complemento de subsistência. O contrabando para o país vizinho, aproveitando o factor vizinhança, também trazia algumas benesses.
A fraca produtividade agrícola, devido à pobreza dos solos por um lado e à sempre ausente reestruturação fundiária por outro, com os terrenos, de geração em geração, sucessivamente divididos, não trazia a resposta que as famílias ansiavam.
O movimento migratório foi a resposta natural. Primeiro para as Américas, África e Europa depois. Os grandes centros urbanos do continente iam acolhendo também muitos jovens..
E por esta rampa foi escorregando a população de S. Pedro!

Recentemente, falo num intervalo de poucos anos, algumas iniciativas puseram esta rampa menos inclinada: O Centro Social, alguns melhoramentos como jardinagem e arborização, arruamentos, a construção da ETAR, aquisição de máquinas em associação com outras freguesias do concelho, a dotação recente do importante pavilhão polivalente, etc., têm dado emprego que, para uma pequena freguesia como S. Pedro, tem tradução importante na fixação das pessoas.
Por outro lado, melhores meios de comunicação (o automóvel tornou-se um meio de transporte mais acessível), deixaram as pequenas aldeias como S. Pedro menos isoladas e permite à população activa conseguir empregos noutras terras regressando à aldeia no fim do dia de trabalho.
A agricultura perdeu a importância que tinha e é, actualmente, uma actividade com grandes dificuldades. A construção civil, alguns empregos na pequena indústria e serviços completam as actividades que dão ocupação.

S. Pedro do Rio Seco sempre foi uma aldeia bonita e harmoniosa, mesmo tirando a avaliação suspeita de quem nela nasceu. É também a opinião de muitas pessoas que a visitam e que sem favor assim a classificam. A mais valia que foi adquirindo com algumas obras recentes da iniciativa da Junta de Freguesia e Câmara Municipal tornaram-na ainda mais acolhedora. Aos melhoramentos já referidos acrescentemos também:
- Melhoria das vias de comunicação.
- Instalação de água ao domicílio
- Rede de saneamento e ETAR
- Beneficiação de monumentos (igreja, capela, fonte romana, chafarizes)
- Identificação e sinalização de importantes testemunhos do passado como as sepulturas
antropomórficas, lagar romano e cruzeiros (estes de tipo religioso).
A recuperação de casas por iniciativa dos seus proprietários tem trazido também uma importante valorização à aldeia.

S. Pedro do Rio Seco é, podemos afirmá-lo, uma aldeia bonita, harmoniosa, com condições para acolher quem a queira visitar.

Área rural

Falámos apenas da aldeia dentro dos seus limites urbanos.

Mas S. Pedro tem também uma importante área rural, com uma paisagem atractiva e rica em biodiversidade.
Refiro-me a alguns milhares de hectares de um planalto ligeiramente ondulado com terrenos cerealíferos e pastagens, que a floresta, do tipo pequeno bosque, tem vindo a conquistar mas onde se mantêm largas clareiras que constituem um habitat que dá suporte a vários e importantes nichos ecológicos. A sua área é atravessada por duas linhas de água, o Rio Seco e Ribeira dos Toirões, com caudal de água pouco significativo mas elevada influência ambiental e dinâmica de algumas populações zoológicas e botânicas.
Também a geologia se manifesta com beleza. Há rochedos graníticos, os barrocos, moldados com a beleza que só os elementos souberam fazer com a paciência de milhões de anos. Alguns são mesmo emblemáticos (chamemos-lhes assim) como é o caso do barroco basculante, que com as largas toneladas de peso pode ser oscilado com a força de uma ou duas pessoas! Há também uma área com predominância de quartzo rosado, que de onde em onde se apresenta com bonitos cristais.

Esta área rural é a continuidade geográfica do Parque Natural do Douro Internacional (fica a uma escassa dezena de quilómetros), com características de biodiversidade de igual continuidade.
Vejamos algumas espécies que utilizam este habitat:

1 – Aves

Largas dezenas de espécies de aves nidificam neste território; algumas raras e por isso com classificação apropriada na legislação específica para as aves. É o caso da abetarda, da cegonha negra, do pirolis… Sem a classificação de raras mas que poucas vezes se observam noutras áreas do território nacional e nunca nas zonas urbana como é o caso das cidades, refiram-se, entre outras, os abutres (abutre negro, o grifo, o abutre do Egipto) aves de rapina (milhafre real, milhafre negro, falcão, águias, peneireiros, mochos, corujas, noitibós). Também fazem parte deste habitat algumas com grande beleza das suas penas e por isso não será exagero classificá-las como exóticas. É o caso da poupa, abelharuco, duas subespécies de pica-paus, o papa-figos conhecido localmente como marintéu, o raro e fugidio guarda-rios, o picanço barreto, etc.
O pato-real, galinha de água, a garça-real e as cegonhas, branca e a negra são as aves que na época de reprodução podemos observar garantidamente nas ribeiras e nas charcas.
Quanto a andorinhas podem ser observadas, pelo menos, três subespécies: andorinha dos beirais, a mais comum, andorinha das rochas e a andorinha dáurica esta rara e da qual apenas se conhece um ninho localizado junto à Ribeira dos Toirões.

Foto 1 – Ninho de andorinha dáurica

2 – Mamíferos carnívoros:

Doninha, geneta, toirão, papalva, texugo, gato-bravo, raposa e lontra.
A lontra tem como limite territorial uma altitude à volta dos 750m, atingindo nesta zona esse limite.

3 - Répteis, anfíbios e insectos com destaque especial para algumas espécies raras de escaravelhos.

4 – Animais domésticos:

Vacas, ovelhas, cabras, burros, cavalos, galinhas…

Foto 2 – Gado vacum


Uma visita a S. Pedro do Rio Seco

1 – Vista geral á aldeia com visita da igreja e fonte romana

2 – Passeio rural

Podem ser propostos vários circuitos. Apresenta-se apenas um como exemplo.

Circuito 1

- Início: Junto ao cruzeiro ao Chorro
- 400 m depois: sepulturas antropomórficas.
- Carcidade: local onde provavelmente a aldeia “nasceu”
- 200 m depois virar á direita na direcção do Vale das Devesas onde se podem observar mais sepulturas.
- seguir para Nave Rodrigo até à ponte

Foto 3 – Ponte de nave Rodrigo

- Atravessar a Ribeira e seguir até à raia atravessando uma área onde não é permitido caçar.
- seguir na direcção da “caseta” até à Ponte Pequena na Ribeira dos Toirões.

Foto 4 – Ponte pequena

- regressar pela Salgueirinha, Casa Sola, e novamente Carcidade.

O que pode ser realçado neste circuito:

1 – Sepulturas antropomórficas
2- Formações graníticas, algumas com características curiosas como o rochedo basculante, já mencionado.
3 – Botânica:
carvalho negral
carvalho Cercal (raro nesta zona)
carvalho alvarinho (raro nesta Zona)
freixo
pinheiro bravo
salgueiro
sabugueiro
etc.
Árvores de fruto:
Macieiras, pereiras, cerejeiras, ameixieiras, figueiras, marmeleiros…

Arbustos:
Giesta branca e giesta amarela, rosmaninho, bela luz, tojo, espinheiro…
Hortas: identificar plantas e produtos hortícolas
Foto 5 - Horta

Zoologia:
Aves diversas, dependendo da época do ano
Alguns ninhos:

Foto 6 – Ninho de cotovia; o ovo de cor diferente é de cuco.

Foto 7 – Ninho de pega azul com juvenis(primavera 2009)


Foto 8 – Ninho de perdiz (primavera 2009)



Répteis
Grande variedade de insecto

(os mamíferos carnívoros, por terem uma actividade quase exclusivamente nocturna dificilmente se deixam observar durante o dia exceptuando nas horas crepusculares.

È exigido a não perturbação do meio.

Os circuitos podem ser valorizados com algumas estruturas pouco dispendiosas de que se dão alguns exemplos fotográficos:
foto 9 – Local de observação

Foto 10 – identificação de espécies botânicas. (exemplo típico)

Obras de valorização ambiental

1 – Pequenas represas de água a construir no Rio Seco e Ribeira dos Toirões, aprovadas pelas entidades hidráulicas competentes de forma a garantir, equilíbrio ambiental, que garantam caudais ecológicos e não constituíam barreiras intransponíveis, autênticos garrotes para a vida aquática.

Estas estruturas, a construir a prazo, acrescentariam as seguintes vantagens:
– Dinâmica nas populações aquáticas permitindo um eventual repovoamento com peixes, bivalves de água doce e aves.
- Embelezamento
- suavização do clima

2 – Construção de estruturas de observação se tal se mostrasse necessário.


O circuito aqui “desenhado” que se dirige mais especificamente a pessoas que gostam de “viver” um dia de campo, não é o único objectivo desta modesta ideia. Pode responder também a estudos académicos no âmbito das ciências biológicas, geológicas ou sociais para as quais não falta campo laboratorial.

Conclusão

Nos tempos que correm, é notoriamente crescente o número de pessoas que se sentem bem em contacto com a natureza e por isso se evadem dos grandes centros urbanos onde vivem rodeados de multidões mas quantas vezes bem sós, e procuram, quase sempre em pequenos grupos, lugares rurais, bem longe dos semáforos, do stressante atravessar a rua, das intermináveis filas de automóveis para ir e vir do trabalho, ver o telejornal e telenovela, com repetição no dia seguinte.

E as notícias, em regra, não são boas. Falam do aquecimento global com desaparecimento da calote polar e deixa-nos um pouco perturbados embora pensemos que isso não nos vai tocar a nós quando muito ao vizinho do lado. Vemos cheias e secas onde, dizem, antigamente não havia. Falam-nos da falta de água para consumo, para a agricultura e para produzir electricidade. Olhamos pela janela e perguntamos quanto tempo vai durar o petróleo que alimenta aquela fila de automóveis e a chaminé da fábrica que se vê ao longe.

Há uma crescente onda de preocupação que nos arrasta para a necessidade de mudança, para uma sociedade de transição.

Este pequeno projecto pretende ser o contributo de uma pequena comunidade como é S. Pedro do Rio Seco para responder aquelas pessoas que pretendem evadir-se da cidade, aquelas que querem a mudança, a transição.

AC

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 5

(...)
O CORREDOR DA MORTE

SESSÕES FILOSÓFICAS DA REAL SOCIEDADE DE LONDRES
nas quais se referem as actuais acções, estudos e obras de
investigadores, em muitas e importantes partes do mundo.
Vol. LXII do ano de 1772.

ARTIGO XXIX
Relato sobre aves, comunicado a partir da baía do Hudson. Contém observações sobre a sua história natural, assim como descrições latinas de algumas das espécies mais invulgares. Do sr. Reinhold Forster, membro da Real Sociedade.
Antes da construção da manufactura da baía do Hudson, foi oferecida à Real Sociedade uma grande colecção de invulgares quadrúpedes, aves, peixes, etc, incluindo um catálogo dos seus nomes, locais de permanência, hábitos e modos de vida. Isto através do sr. Graham, que pertence à colónia de Seven River. Os gerentes da companhia da baía do Hudson forneceram as indicações mais corteses, por forma a que estas notícias pudessem ser completadas de tempos a tempos.
(Uma vez que todas as aves descritas pelo sr. Forster têm entrada, sob idêntica designação, nos livros de ornitologia do sr. Latham, não se torna necessário fornecer aqui as descrições latinas).
1. Falco columbarius. Esmerilhão-comum. Ave de arribação.
2. ...
3. ...
18. Espécie nova. Scolopax borealis. Maçaricão-esquimó. Esta espécie de maçarico é até hoje desconhecida dos ornitólogos, e é mencionada pela primeira vez na Faunula Americae Septentrionalis, ou no catálogo da fauna norte-americana. Os indígenas chamam-no “wee-kee-me-nase-su”. Procura alimento nos pântanos, comendo vermes, minhocas, etc. Passa por Fort Albany em Abril ou no princípio de Maio. Nidifica no norte, regressa em Agosto, e migra para o sul, em bandos gigantescos, nos finais de Setembro.

(...)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 4

(...)
Duas espécies de maçaricões nidificam na tundra árctica: o esquimó e o norte-americano, que é mais abundante e um pouco maior. Na extensa família das narcejas, dos maçaricos-das-rochas e das tarambolas, são eles que têm as pernas e os bicos mais compridos. E, tratando-se embora de duas espécies diferentes, dificilmente se distinguem pelo aspecto exterior.
O dia árctico era longo. E, apesar do vento fresco que corria sobre a tundra, a atmosfera mantinha-se quente e húmida. O maçaricão esgaravatou o solo pantanoso em busca de alimento, e depois regressou à guarda da reserva, observando atentamente o horizonte plano. Pouco antes do meio-dia surgiu ao longe, do norte, um búteo-calçado. Descreveu círculos sobre o rio e atacou um pequeno roedor descuidado que se aventurou no musgo. Aos poucos, o grande caçador aproximou-se da reserva, e o maçaricão observou-o, temeroso. Finalmente o búteo atravessou a fronteira. Embora não marcada no solo, ela estava perfeitamente definida no cérebro do maçaricão. E logo este levantou voo e iniciou uma veloz perseguição. As suas asas batiam fortemente, e, quando se aproximou do intruso, cujo corpo era dez vezes mais pesado que o seu, soltou da garganta um grito de aviso agudo e estridente.
Durante alguns segundos o búteo não deu qualquer atenção aos gritos de ameaça. Depois rodou para norte e partiu sem luta. Teria podido matar o maçarico com um simples golpe de garras. Mas só matava quando precisava de alimento, e voluntariamente deixou o campo livre a uma ave que o fogo do acasalamento havia tornado tão insensata.
O sol pôs-se entretanto, mas a vista não se desvaneceu. E, como um véu, a noite árctica desceu pela primeira vez sobre o maçaricão. Depressa a tundra arrefeceu, e parou de repente o vento que uivara durante todo o dia. Seguiu-se uma atmosfera de penumbra, que não era propriamente escuridão.
Por um impulso instintivo que ele não entendia, o maçaricão sentiu-se atraído para o monte seco de rochas, em cuja base se achava o tapete de musgo que havia de abrigar o ninho. Este era o seu quinto verão e ele nunca tivera um ninho, nem uma vez sequer avistara uma fêmea da sua espécie. Só vagamente se lembrava do ninho e da mãe, no seu tempo de infância. Mas sabia, sem o ter aprendido, como se corteja uma fêmea e como se faz um ninho, como se isso viesse duma vida anterior.
Agora dormia, apoiado numa só perna e com o bico escondido nas penas do dorso. Dormia ao lado das rochas. Em breve o ninho estaria ali, era o que o instinto lhe dizia. Amanhã ou depois chegaria a fêmea, pois o curto ciclo da vida no Árctico não permitia demoras.
(...)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 3

(...)
O maçaricão levantou voo, elevou-se lentamente e circulou em volta dos dois acres de terreno, com uma grande mancha de água e musgo, que demarcara como reserva. Por vezes, enquanto planava lentamente de asas abertas, fazia ressoar o seu canto nupcial, um gorgeio baixo e prolongado. Mas não havia no seu cantar qualquer jovialidade. Era antes um grito de guerra, um aviso a todos os que pudessem ouvi-lo: a reserva tinha um dono, a arder no fogo do acasalamento. Nada o atemorizava, e defendia a reserva para a sua fêmea, que havia de chegar.
Conhecia cada rocha, cada banco de cascalho, cada charco, cada arbusto da sua reserva. Embora em tanta aspereza e solidão não houvesse nada de notável, que pudesse servir de demarcação. A fronteira norte e oeste era formada pela curva do rio que avistara lá de cima, e os outros limites não eram muito acentuados. Apenas alguns blocos de granito espalhados pelo chão, nos quais brilhavam reflexos de pirite e de mica, um par de galhos de bétula e amieiro e algumas manchas de água castanha. Mas o maçaricão sabia exactamente onde terminava a sua reserva. Quase ao meio havia um montão de rochas. De tal modo seco que, em dez mil anos, desde que os glaciares tinham recuado, nem musgos nem líquenes tinham podido fixar-se nele. Porém, logo abaixo, onde se juntava a água escorrente, o tapete era espesso e exuberante. E seria aí, numa almofada de musgo, que a fêmea procuraria um lugar, escavaria um ninho achatado, em forma de prato. Cerca-lo-ia de folhas e ervas frescas, e nele havia de pôr os quatro ovos cor de azeitona.
O maçaricão voou em círculos cada vez mais altos e o seu canto nupcial tornou-se mais repetitivo e urgente. Subitamente parou, e o canto transformou-se num grito gárrulo e febril. Lá longe, a montante do rio, mancha castanha no céu acinzentado, voava uma outra ave em direcção ao norte, e o maçaricão reconheceu-a como membro da espécie. Esperou, pairando sobre a reserva em círculos cada vez mais apertados, e a outra ave aproximou-se. A fêmea vinha aí. Os três verões que o macho passara sozinho, esperando em vão, eram uma lembrança vaga e desagradável. Mas agora ela tinha desaparecido do seu cérebro tão poderosamente determinado por reacções instintivas, que apenas um pequeno espaço restava para a memória e a reflexão consciente. O instinto dominava-o completamente ao elevar-se na espiral do voo nupcial, não já com as poderosas batidas de asa habituais, mas esvoaçando como uma borboleta. Chegado ao ponto mais alto, deixou-se cair de novo, silvou de encontro ao solo, recuperou baixo sobre a tundra e voltou a subir.
A outra ave escutou-lhe o grito selvagem, mudou de direcção, veio velozmente ao seu encontro. Obedecendo instintivamente às leis da reserva, que todas as aves conhecem, a fêmea poisou numa rocha musgosa, situada um bom pedaço fora da reserva do macho. Excitado, ele ardia em paixão. Numa sequência rápida efectuou ainda várias danças nupciais, subiu no ar ruidosamente até quase desaparecer da vista, desceu de novo em picada violenta, e de cada vez quase roçou o solo. Durante alguns minutos, a fêmea alisou indiferentemente as penas, sem dar atenção a estas demonstrações amorosas. Depois correu e voou sobre o terreno, alternando rápidas batidas de asa com passadas febris. Entrou na reserva e baixou-se, submissa, ao chegar perto do macho. Este soltou um assobio estridente e subiu na vertical para um último voo, pairou lá no alto sobre ela, deixou-se cair como um meteoro e poisou a cerca de dois metros de distância. Ficou parado por um momento, eriçou as penas, esticou o pescoço e caminhou para ela. Porém, a cerca de um metro, parou subitamente. Emudeceram os sons meigos de ternura que até ali lhe saíam da garganta, e em seu lugar ecoou uma rápida sequência de gritos de advertência. O comportamento humilde e submisso da fêmea também se modificou. De súbito pôs-se de pé e afastou-se. O macho já não a cortejava, baixou a cabeça como um galo de combate e investiu contra ela. A fêmea desviou-se e atirou-se para o ar. Ele seguiu-a, aos gritos, ameaçando-a com o bico repetidas vezes.
O impulso nupcial do maçaricão-esquimó transformou-se de repente em fúria agressiva. A fêmea era uma intrusa, em vez de uma companheira. De perto, ele reconheceu a sua penugem mais escura e a sua postura diferente. Embora bastante semelhante, era um maçaricão da espécie norte-americana. Ele sabia, por reacções instintivas, criadas pela natureza para evitar acasalamentos estéreis entre espécies diversas, que não se tratava da fêmea que aguardava. Afugentou-a durante meio quilómetro, com uma fúria tão apaixonada como o seu amor alguns segundos antes. Depois voltou à reserva e continuou à espera. A sua fêmea chegaria em breve.
(...)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Andorinha de transição

[clique!]

Chegou a Almendra já tarde e vinha esbaforida. Da viagem migratória, de tanto pensar na crise que se globalizou, no clima descontrolado, no consumismo doente, no crescimento contínuo.
Recusou fazer o ninho no beiral suburbano, e logo reparou naquela porta. É certo que a estrada ao lado vai cheia de camiões, motocicletas, burros que puxam carroças. E peões que vão tomar café ali em frente.
Talvez seja um bom lugar para avançar com a transição.

Hora do folhetim - 2

(...)
Na exaltação do regresso a casa, o maçaricão mal se lembra de que ficou assim, misteriosamente sozinho, durante três longos verões. Insaciado, o fogo do acasalamento acabou por se extinguir por si próprio, depois de ele ter ficado longas semanas solitário. Inexplicavelmente nenhuma fêmea veio ao seu encontro. Porém, dominado pelo instinto, o cérebro do maçaricão não sabia, nem perguntou porquê.
Voara dez horas sem descanso, e agora o corpo pedia-lhe alimento com urgência. A pulsação rápida e os processos metabólicos, que durante longas horas tinham mantido os poderosos músculos das asas em movimento, pediam muita energia. Começou a remexer a lama com o longo bico. Era um bico singular, adequado a este modo de procurar alimento. Tinha mais de seis centímetros de comprimento e era encurvado para baixo, à maneira de uma foice. O maçaricão abria-o levemente e arrastava na lama a ponta delicada, em pequenos movimentos circulares, para tactear as larvas moles de insectos e crustáceos. Era um processo muito rápido, e o bico entrava e saía da lama tão depressa como a agulha de uma máquina de costura.
Nas zonas baixas havia ainda acumulações cinzentas de neve, mas o sol brilhava quente e o Árctico palpitava já de vida. Havia alimento abundante, e o maçaricão comeu mais de uma hora sem interrupção, até o papo lhe ficar grotescamente inchado, na raiz do pescoço. Depois caiu em sonolência. Firmado sobre uma única perna, manteve o pescoço virado para trás e o bico enterrado nas penas do dorso. Era mais descanso do que sono. Os ouvidos e o único olho descoberto permaneciam incansavelmente atentos às raposas e às corujas polares, que se aproximavam como fantasmas. No seu corpo, os processos metabólicos desenvolviam-se rapidamente, e meia hora de descanso equilibrou a perda de energia do voo de dez horas. O maçaricão estava completamente restabelecido.
O verão polar era curto, e havia muito que fazer quando a fêmea chegasse. O maçaricão voou até uma elevação rochosa que se erguia a cerca de um metro do solo, poisou e olhou à volta. Voara catorze mil quilómetros para atingir esta terra inóspita, áspera e escalvada. Uma região pelada, vazia. Bétulas e salgueiros, curvos e deformados, tinham resistido às tempestades e ao frio do longo inverno. Durante decénios apenas lesmas rastejaram sobre eles, e não tinham crescido mais de quarenta ou cinquenta centímetros. A fronteira onde a floresta subpolar de pinheiros se tornava mais escassa, e onde começava a tundra norte-americana, encontrava-se oitocentos quilómetros mais a sul.
Em geral a terra era plana e húmida, tão salpicada de charcos pantanosos que agora, na primavera, ficava metade debaixo de água. Os pequenos montes de cascalho e os afloramentos rochosos que represavam os charcos e os impediam de transbordar, formando um imenso mar pouco profundo, estavam agora revestidos de espessos tapetes de musgos e líquenes, que reverdeciam muito rapidamente. Alguns centímetros mais fundo encontrava-se o gelo eterno, duro como a blindagem dum navio de guerra, as fundações geladas da terra.
(...)

domingo, 11 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 1



A beleza e o espírito de uma obra de arte podem ser reproduzidos, mesmo depois de ela ter sido destruída. Uma harmonia desaparecida pode inspirar de novo os criadores. Porém, se o que estiver em causa for uma espécie de seres vivos, terão que passar céu e terra, antes que ela possa voltar a existir.
C. William Beebe, “A ave. Forma e função.”


1

Em Junho a noite do Árctico é muito curta, pouco mais que um intermezzo de penumbra cinzenta. Durante os longos dias, nuvens de mosquitos enxameiam das valas profundas, como cortinas de fumo, sob o degelo da tundra.
Antigamente, nesta época do ano, as populações esquimós aguardavam aqui o doce, fremente e longo trinado dos maçaricões-esquimós. Eles regressavam ao Árctico em grande número, trazendo consigo a perspectiva de carne tenra. Mas os grandes bandos já não aparecem. A sua própria lembrança se perdeu, ficando apenas a lenda. Pois o maçaricão-esquimó, primitivamente uma das mais abundantes aves de caça da América do Norte, deixava atrás de si, na primavera e no outono, um verdadeiro corredor da morte. Choviam tiros de todos os lados, e ele foi demasiado lento a aprender o que era essencial à sobrevivência: o medo, perante a espingarda do caçador.
É verdade que a espécie se manteve, mas encontra-se em perigo extremo de extinção. Tal como antes, os poucos maçaricões-esquimós que ainda existem continuam a fazer a sua longa e perigosa migração, desde a Patagónia argentina onde passam o inverno, até às planuras húmidas da tundra, que descem para o mar polar. Aqui procuram a sua fêmea. Mas o Árctico é imenso, e, as mais das vezes, a sua busca é vã. Agora voam sozinhos, os últimos representantes de uma espécie moribunda.


Quando clareou a penumbra da noite sobre o Árctico e mais um dia de Junho começou, primeiro com um vermelho pálido e depois um amarelo vivo, o maçaricão reconheceu finalmente, quase mil metros abaixo de si, a familiar curva do rio, debruada de gelo. Voara nessa noite oitocentos quilómetros através da tundra plana e uniforme, sobre muitas curvas de rios que podiam confundir-se com esta. Porém ele sabia que só agora estava em casa, e sentiu-se esgotado. Tinha as pontas castanhas das rémiges e das tectrizes em desalinho, da marcha migratória que começara abaixo dos trópicos e terminara sobre estas planuras estéreis e escalvadas, após um raivoso voo ininterrupto. O instinto do acasalamento rugia nele.
O maçaricão abriu as asas e deixou-se cair em glissagens laterais. Pedaços de gelo rosados e brilhantes, flutuando no rio acastanhado, aproximavam-se vertiginosamente. Então recuperou da picada e desceu em voo planado até ao chão. Pousou na margem lamacenta dum charco esmaltado, um pouco afastado do rio.
Os maçaricões chegam aqui em Junho, desde há milénios, para defender a reserva e os locais de nidificação. Na tundra desolada aguardam febrilmente as fêmeas, esperando que elas procurem aqui o seu companheiro para este ano. E, durante o tempo de espera, mal conseguem aliviar o instinto de acasalamento nas lutas com os vizinhos, pela defesa da reserva que escolheram.
(...)

Boas-novas - JC4

Felizmente foi possível, com o Manel Alcino, definir no pavilhão um local que parece adequado para apresentar o quadro do Roberto Chichorro e a cabrinha.
Veremos se, no próximo encontro em S. Pedro, ele já estará exposto. Mas tenho que saber do mestre se a exposição à luz de janelas próximas, que não são veladas por cortinas ou persianas, não poderá com o tempo, prejudicar as cores.
JC

sábado, 10 de outubro de 2009

Hora do folhetim 0 - JC3

A hora do folhetim é um intermezzo lúdico e didáctico. Crê-se que vem a propósito, justamente por causa da questão da extinção das espécies.
É a história d'O Último Maçaricão-Esquimó, uma espécie hoje extinta, mas há décadas muito comum na América. Nidificava no Árctico, e passava o inverno no sul da Patagónia. E durante essas migrações gigantescas era o alvo predilecto dos caçadores do Middle-West. Acabou dizimado por eles.
O autor é um biólogo canadiano, Fred Bodsworth, que a publicou em 1954. Não tem edição portuguesa.
Eu tive a sorte de receber a obrinha, no Natal de 1977, duma namorada que tive na Alemanha. Muito mais tarde traduzi-a. A obra, que não a namorada. Porque essa nunca a soube traduzir. A namorada, que não a obra. Agora apresento-a aqui, em fascículos. Prazer e proveito é o que desejo aos leitores.
Contra-capa
Viaja sem descanso, do Árctico para sul, levado pelo desejo de encontrar uma companheira. Luta encarniçadamente com o frio e a neve, com a chuva e os temporais, vence o Atlântico num voo ininterrupto de 60 horas, recobra novas forças no Orinoco e avança, procurando sempre, até à Patagónia.
Mas o verão passa e ele continua sozinho. E quando a esperança já quase lhe morreu aparece a desejada. Saúdam-se, entusiasmados, e iniciam juntos o regresso a casa.
O caminho passa agora sobre as alturas dos Andes, através de nuvens geladas. Mas já não falta muito para chegar ao destino, uma vez que a fêmea, tal como milhares de outras, será vítima dum atirador pérfido.
Ele fica de novo sozinho e percorre assim a última etapa. Instala-se na sua reserva habitual e espera. Será que chega a companheira, ou ele é, realmente, o último maçaricão-esquimó?