quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Hora do folhetim - 19

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O maçaricão mudou de direcção e as tarambolas seguiram-no, embora só as que vinham imediatamente atrás dele pudessem ver que ele rodava para leste. Acumulada entre as rémiges, a neve colava-se-lhes nas asas. E estas, que ainda há poucos minutos reagiam prontamente às flexões e distensões dos músculos do peito, eram agora pesadas e rígidas. Rodavam no ar como remos, desperdiçavam energia, empurravam o ar para baixo em vez de o aspirarem, de modo a provocar a corrente indispensável ao voo. A sua velocidade diminuiu até ficarem quase imóveis, um bando desordenado e confuso, a cerca de mil e quinhentos metros sobre o mar. Então o maçaricão dirigiu-se de novo para leste. Começou lentamente a descer e, através da gravidade, ganhou a velocidade que as suas rémiges encharcadas não podiam atingir. O andamento era agora normal, mas, para o manter, teriam que perder altitude. Do deserto cinzento, em baixo, crescia para eles o mar.
O maçaricão foi descendo lenta e progressivamente, adaptou o ângulo de ataque das sensíveis asas à pressão da corrente de ar, de modo a poderem manter a velocidade normal com um mínimo de perda de altitude. Às vezes abrandavam os turbilhões de neve e por momentos era possível manter a horizontal. Então voltava a neve, de novo mais densa, as asas ficavam pesadas, e o maçaricão tinha que voltar a descer.
As costas da Nova Escócia e da Nova Inglaterra estavam já a várias horas de distância, atrás do nevão impenetrável. À sua frente, quem sabe se apenas a alguns minutos, estava a atmosfera mais quente e mais tranquila, para lá da tempestade. Porém, mesmo depois de ultrapassarem a frente fria, tinham que continuar a voar na direcção do mar sem fim, para evitar as nuvens geladas que agora os empurravam impiedosamente, cada vez mais perto da crista das ondas. O maçaricão sabia disso, não por reflexão mas por comportamento instintivo. Por uma vaga inspiração que lhe dizia também estar algures uma fêmea à sua espera, quando os musgos e os líquenes da tundra ficassem verdes de novo, e o tempo do acasalamento voltasse.
O maçaricão possuía músculos peitorais e tendões substancialmente mais fortes do que as pequenas tarambolas. Mas agora doíam. Mesmo a ele, custava-lhe um extraordinário dispêndio de energia vencer esta dificuldade trazida pela neve incrustada nas asas. Uma vez que perdiam altitude, atingiram de novo as camadas de ar inferiores, instáveis e agitadas. A formação rompeu-se, mas as aves continuaram juntas, fazendo-se ouvir por altos gritos. Cada ave estava sozinha num mundo de vento e neve, e só este gorgeio fremente as ligava umas às outras.
Durante longo tempo voaram no ar frio, sem poderem observar a rota. O maçaricão procurou manter a altitude, até os músculos do peito e as fibras todas do corpo lhe vibrarem de dor e de cansaço. Ao gorgeio das tarambolas juntou-se em breve um assobio agudo, cada vez mais forte. Era o ruído da neve estalando na água.
Então o maçaricão conseguiu ver através da cortina branca. Vagas de crista prateada apareciam à sua frente, cresciam espumando e desapareciam lá atrás. O nevão abrandou e as tarambolas podiam ver-se de novo. Voavam ao acaso, atrás do maçaricão, e as mais fracas iam ficando para trás. Estavam mais próximas da água, pois tinham que sacrificar ainda mais altitude para poderem acompanhar as mais fortes. A neve colava-se-lhes às pontas das asas. E, mal se derretia com o calor do corpo, logo outra se acumulava.
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Um mundo feito à mão-9

A velha botica era mais ou menos isto.

Planeta-Mãe - 9

O DECLÍNIO DAS ABELHAS
(informação extraída de Dennis van Engelsdorp, pesquisador no departamento de agronomia da Pensilvânia. Foi um dos primeiros cientistas a descrever o fenómeno de decadência das colónias, chamado Colony Colapse Disorder, CCD)
A sobrevivência e a evolução de 80% das espécies vegetais do planeta, e a produção de 84% das espécies cultivadas na Europa dependem, pelo menos em parte, da polinização feita pelos insectos. 35% da tonelagem mundial de alimentos de origem vegetal provêm de culturas dependentes em parte de insectos polinizadores. Certas espécies, como as abóboras, os melões e outras cucurbitáceas, o cacau, o maracujá… dependem integralmente da acção dos insectos: o vento e a água não têm aí qualquer papel.
Em todos os países onde a mortalidade das abelhas é convenientemente acompanhada, verifica-se há vários anos uma sobre-mortalidade anual de mais de 30%. No estado actual dos estudos, pareceria que as defesas imunitárias das abelhas diminuem, tornando-as mais vulneráveis às doenças e aos acasos climáticos. Sendo provavelmente múltiplas, e não estando ainda cientificamente estabelecida nenhuma delas, não conhecemos oficialmente as causas do problema.
Nos Estados Unidos, a polinização tornou-se uma indústria. Metade dos apicultores americanos não vivem da venda do mel, mas do aluguer das suas abelhas a grandes cultivadores de legumes e frutas. Enquanto que na Europa os maiores apicultores gerem algumas centenas de colmeias, alguns americanos chegam a possuir 40 mil. Transportam-nas dum lado para outro, em função das estações e das necessidades de diversas culturas industriais: desde os laranjais da Flórida aos amendoais da Califórnia, passando pelos pomares de macieiras da Pensilvânia, e os de mirtilos do Maine.
Actuando este mercado também segundo as leis da oferta e da procura, o aluguer duma colmeia passou em poucos anos de um intervalo de 45 a 65 dólares, para valores que ultrapassam os 170 dólares. Em 2008, os produtores de pepinos da Carolina do Norte não encontraram colmeias suficientes para polinizar todas as suas culturas, tendo reduzido a sua produção em cerca de 50%. Se a taxa de sobre-mortalidade das abelhas se mantiver nos Estados Unidos, é de crer que estas situações se multipliquem nos anos futuros.
Mesmo sendo menos afectada por este déficit brutal, a tendência de fundo na Europa é a mesma. Estando a polinização menos industrializada do que nos Estados Unidos, as consequências do colapso das colmeias far-se-ão sentir de modo mais insidioso. Se certas produções registarem baixas progressivas, não é seguro que as causas dessa tendência sejam associadas ao declínio das abelhas. Quem poderá salvá-las?
Uma questão se coloca hoje: o que é que nos permite pensar que esta tendência se inverterá? Não tendo reconhecido as causas do fenómeno, não podemos tomar nenhuma medida para o remediar. Em tal caso, temos mesmo o direito de perguntar se esta sobre-mortalidade não corre o risco de se amplificar. Com que consequências? Albert Einstein já há 50 anos nos interpelava sobre as leis de interdependência entre as espécies, citando as abelhas: No dia em que a abelha desaparecer, a humanidade disporá de dois anos!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Hora do folhetim - 18

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O maçaricão manteve exactamente o rumo sul. Quando os montes escarpados do Lavrador desapareceram da vista, deixou de poder orientar-se por qualquer marca no terreno. Apesar disso dirigia o bando com uma segurança infalível. Algures, no jogo de forças cósmicas entre a rotação e o magnetismo terrestres, havia uma linha de orientação, uma direcção em relação à qual o seu cérebro estava perfeitamente alinhado. Ele mantinha o rumo sem esforço. Um instinto velho de séculos completava inconscientemente esta obra-prima, que pedia meças às maiores realizações da consciência no reino animal.
A noite ia a meio. Oitocentos metros abaixo do bando jazia a alcantilada costa da Nova Escócia e o cabo Breton, orlado de branco pela rebentação. O maçaricão já algumas vezes tinha parado aqui, mas desta vez o ano já ia alto, era já tarde, uma escala estava fora de questão. O bando tinha necessitado de cinco horas para atravessar o golfo de São Lourenço. E agora voava sobre a ponta do cabo Breton, na direcção do Atlântico, que se abria perante ele como uma goela escancarada.
O maçaricão mudou entretanto para uma posição mais cómoda, no meio das outras aves, e aí se manteve uma hora, cedendo o comando a uma tarambola. Então, vinda do continente canadiano, aproximou-se uma frente fria. Surgiram turbulências e ele colocou-se de novo à cabeça. O ar frio, mais pesado, empurrava as camadas de ar inferiores, mais quentes, para cima. E uma vez que, a grande altitude, a temperatura era mais baixa, a humidade do ar quente condensava-se e provocava precipitação. Primeiro aguaceiros e depois neve, à medida que as temperaturas baixavam.
Os turbilhões do ar davam que fazer ao bando. A princípio nevava apenas lentamente, mas depois os flocos tornaram-se maiores, amontoavam-se uns nos outros sobre as asas das aves, e dificultavam o voo. Instintivamente o maçaricão ganhou altitude e todos o seguiram. Nas camadas superiores o ar era mais calmo, mas as nuvens de neve tornaram-se mais densas. As aves puderam de novo fazer a sua formação, mas tinham que confiar sobretudo na intuição, na percepção dos turbilhões fornecida pelas pontas das asas. A tempestade de neve era agora tão violenta que cada uma delas mal podia ver o companheiro que a precedia. Mas mantinham a altitude que tinham atingido.
Não era possível avaliar a velocidade de passagem da frente, para leste. Apesar disso, em parte por lembrança de anteriores migrações, e sobretudo por intuição instintiva, o maçaricão sabia que à velocidade de 80 quilómetros por hora iriam encontrar de novo a frente fria. Mas então voariam à frente do temporal, uma vez que este se deslocava mais lentamente do que eles. Assim, teriam que alterar o rumo e voar com o temporal, para leste, em direcção ao mar aberto.
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Um mundo feito à mão-8

Na II Guerra Mundial, cada soldado americano consumia 3,8 litros de combustível/dia.
Na guerra do Vietname, tal consumo subiu para 30 litros/dia.
Nas guerras actuais do Iraque/Afeganistão, vai em 83 litros/dia.

Planeta-Mãe - 8

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A EROSÃO DOS SOLOS

Chateaubriand escrevia: “As florestas precederam os homens; os desertos seguem-nos”. Que diria ele hoje?
A erosão dos solos faz parte dum fenómeno em aceleração há anos. Pode transformar uma terra fértil em deserto. Como é que isso é possível?
Quando por uma razão ou outra a terra se encontra a nu, exposta ao vento, ao sol e à lavagem das chuvas, a erosão dos solos é um fenómeno natural. Mas as técnicas da cultura intensiva aceleraram este fenómeno, propagando-o a todo o planeta. O efeito secador dos ventos acentuou-se com a ausência de sebes, árvores ou pomares nos campos. A irrigação intensiva, ao sol, e sem cobertura do solo, provoca uma verdadeira lixiviação das terras.
Os produtos químicos misturados na água acentuam esta agressão, pelas reacções químicas que provocam.
A água das bombagens, muito mais “carregada” que a água das chuvas, depõe minerais no solo, acelerando a esterilização da terra: é o que se chama a salinização dos solos.
As monoculturas, deixando os solos a nu durante longos períodos, os trabalhos repetidos e profundos, são outras práticas que favorecem a erosão.
A “sobre-pastagem”, que podemos definir como criação intensiva a céu aberto, produz os mesmos efeitos. A terra é pisoteada e posta a descoberto pelo gado concentrado numa superfície reduzida, em relação ao número de cabeças. Os excrementos excessivos deixam de ser assimilados pelo solo, que se torna tóxico.
Cada parcela de terra assim posta a nu é uma nova ferida à superfície. Uma ferida que a acção do sol, do vento e da chuva vai abrir cada dia mais. É a lei do deserto a avançar.
Milhões de hectares de florestas tropicais foram já destruídos para os transformar em pastagens deste tipo, especialmente no Brasil. Este país produz grandes quantidades de carne bovina para os mercados ocidentais, particularmente o americano. Dez anos depois de abatida a floresta primária, estas terras notavelmente férteis transformam-se em desertos estéreis e tóxicos.
Todos os anos, uma superfície cultivável equivalente a duas vezes a da Bélgica torna-se estéril. Um terço da superfície agrícola espanhola está ameaçada a curto prazo. Os Estados Unidos estão confrontados com o mesmo problema em milhões de hectares.
Somente em 50 anos, a superfície cultivável no mundo passou de mais de 7 hectares por habitante, para os 2,3 hectares actuais. E este fenómeno é tanto mais inquietante, quanto é praticamente irreversível.
As culturas de agro-combustíveis e de forragens para gado só podem aumentar no futuro. Isso implica um novo desenvolvimento das culturas intensivas, e a prossecução da desflorestação. As perspectivas de consumo de carne no mundo vão no sentido do crescimento. São de esperar as práticas de “sobre-pastagem”.
Com tais tendências, o futuro da terra fértil parece tão sombrio como os milhões de toneladas de húmus que desaparecem todos os anos da superfície do planeta. A erosão dos solos tem futuro garantido.
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