segunda-feira, 29 de março de 2010

Hora do folhetim - 21

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O maçaricão sabia que tinham de continuar a voar ainda para leste, para que o temporal os não apanhasse de novo. Mas isso era um simples reconhecimento factual, que não provocava nenhum sentimento de medo. Já tinha esquecido o pânico do tempestuoso céu de neve, tinha esquecido mesmo as tarambolas afogadas, só se lembrava da tempestade. Na sua memória ela não era um acontecimento horrível e medonho, apenas um inimigo natural com que tinha que contar, e que era preciso evitar.
Mas o bando queria dirigir-se para sul, e, para leste, apenas se estendia o imenso mar vazio. Assim, meia hora depois, o maçaricão mudou de rumo e apontou a sul. Durante cerca de meia hora voaram nessa direcção, sem obstáculos, até que a frente tempestuosa os apanhou de novo. Logo que as primeiras gotas de chuva caíram, o maçaricão rodou para leste, e alguns minutos depois o bando encontrou de novo ar límpido e tranquilo.
Nas três horas que faltavam para a alvorada tiveram que repetir várias vezes esta manobra. Rumavam para sul até a chuva os atingir, e viravam a leste para a manter atrás de si. Voavam precisamente em direcção ao sul, quando um clarão amarelado rasgou o céu sombrio. Amanhecia rapidamente, a escuridão do mar transformou-se num verde frio, mas o sol não nascera ainda. Continuaram a voar para sul, uma hora, duas horas, o manto de nuvens tornou-se menos espesso e o dia mais claro, e o temporal não voltou. Mesmo as grossas nuvens cinzentas a oeste desapareceram, e a leste rompeu o sol, como um archote, através da névoa que se dissolvia. O ar permanecia frio, mas em breve apenas o sol se erguia, no vasto céu azul.
O bando tinha finalmente ultrapassado o temporal, rompendo para sul. O que ainda restava das nuvens geladas da noite diluía-se lá para o norte, sobre os bancos de pesca da Terra Nova.
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Um mundo feito à mão-10

40% das colheitas alimentares mundiais destinam-se à alimentação do gado. 70% da superfície cultivada nos países desenvolvidos destina-se à alimentação animal.

Planeta-Mãe - 11

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OS RISCOS DE EPIZOOTIAS ANIMAIS
As criações estabuladas confinaram em hangares os animais em grande número. Nesta promiscuidade, qualquer epidemia pode ser um desastre. São ministrados aos animais tratamentos antibióticos preventivos e outros medicamentos.
Tal como para as plantas, as mesmas causas têm os mesmos efeitos. Os germes, bactérias e outros vírus são cada vez mais resistentes e patogénicos. A geração “altamente patogénica” do vírus da gripe das aves H5N1 é provavelmente consequência destas práticas nos aviários. Antes de sofrer mutações, este vírus estava identificado desde 1985. Sujeito a um ambiente hostil nas criações intensivas, quase desapareceu durante vários anos. Mas reapareceu em 1998 na Ásia: mais virulento que nunca, altamente patogénico e resistente a todos os tratamentos conhecidos.
Este princípio da “mutação para resistir” verifica-se em numerosos organismos vivos. As ervas mutam para resistir aos herbicidas, os insectos mutam para resistir aos insecticidas, os germes e outros bacilos mutam para resistir aos fungicidas ou aos antibióticos, etc. Os germes multi-resistentes tornam-se a obsessão dos hospitais. A medicina moderna é confrontada com o retorno de doenças humanas que julgávamos erradicadas. A multiplicação de casos de tuberculose multi-resistente é apenas um exemplo.
O nível das defesas imunitárias dos animais criados em estábulo baixou consideravelmente, em razão do stress, do confinamento, da alimentação poluída química e geneticamente, e dos tratamentos antibióticos preventivos. Em consequência disso, os riscos de epizootias maiores cresceram.
Em 2007, uma nova forma de vírus da febre catarral, a doença da língua azul, apareceu nos Países Baixos. Resistente aos tratamentos habituais, o vírus estendeu-se às criações de ovinos e bovinos da Europa do Norte. Quem já esqueceu os desastres provocados pela febre aftosa na Inglaterra? E pela gripe das aves na Ásia? Estas doenças tornam a carne imprópria para consumo, e obrigam a verdadeiros massacres.
Para além dos problemas de consciência, o sacrifício de milhares ou milhões de cabeças de gado constitui um desperdício incrível. Para fornecer 50 Kg de proteínas, um animal consome no mínimo 800 Kg de proteínas vegetais. A menos que consumamos nós as culturas forrageiras previstas para os animais, todo o “desperdício de carne” representa uma diminuição da oferta de alimentos nos mercados. E origina também um aumento da procura no mercado de cereais. Com efeito, quando os produtos “animais” se tornam raros, a procura volta-se para os restantes.
Nos países ocidentais, os produtos de origem animal (carne, lacticínios, ovos, etc) representam 20 a 40% das calorias alimentares consumidas todos os dias. Tantas quantas seria necessário substituir por outros produtos, se estes viessem a escassear.
Na China, em 2007, a epizootia suína chamada da orelha azul dizimou as criações industriais. Várias dezenas de milhares de porcos morreram ou foram abatidos. Os preços da carne mais consumida na China praticamente dobraram (+86%) entre Julho de 2006 e 2007. Os chineses voltaram-se para o arroz e os cereais, o que começou a esvaziar os stocks de arroz, ao mesmo tempo que baixava a produção mundial em resultado de fenómenos climáticos desfavoráveis em países produtores como o Vietnam. O preço do arroz quase duplicou em poucos meses.

domingo, 7 de março de 2010

Hora do folhetim - 20

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O maçaricão voou alguns segundos na horizontal, e logo o andamento baixou. Teve que descer, para ganhar velocidade e outra vez altitude. Podia agora ver claramente o mar, onde as cristas brancas das ondas se erguiam da água escura. Às vezes uma vaga erguia-se tão alto, que só por um ou dois metros não atingia as aves em luta.
Uma onda gigante elevou-se diante deles. O maçaricão venceu com esforço a inércia das asas e sobrevoou-a a custo. Mergulhou no leito da onda, esforçando-se por continuar em frente. A próxima crista era mais baixa, e ele ultrapassou-a com um bom intervalo de segurança. Atrás dele a grande vaga atacava, raivosa, as tarambolas. Três aves mais fracas lutaram desesperadamente por ganhar altitude, mas em vão. Ficaram penduradas no ar, sem forças. Nenhum grito se ouviu. A vaga cresceu e engoliu as aves. Passou, e elas tinham desaparecido. A natureza, tão selectiva em todas as coisas, é ainda mais exigente quando se trata da morte. Os mais fracos não pedem compaixão, nem lhes é concedida misericórdia.
O bando esforçou-se por continuar, voou rente à água, lutou encarniçadamente para ultrapassar as cristas das ondas. Gozou, para respirar, as pequenas pausas de segundos, no ar sossegado dos seus leitos. Então, de um longo talvegue cresceu uma muralha fervilhante, mais alta que todas as vagas anteriores. A espuma fustigou as asas do maçaricão. Durante segundos teve que lutar contra os violentos turbilhões da corrente para se manter no ar. Mas a espuma varreu uma parte da neve que se lhe colara às asas. Por um minuto estas puderam mover-se no ar com toda a força. Depois a neve sobrecarregou-as de novo. Apenas o saber que a frente fria seria em breve ultrapassada fez o maçaricão aguentar.
Muito lentamente o ar foi-se tornando mais quente, tão lentamente que mal se podia sentir a mudança. Então a neve transformou-se repentinamente em chuva. Estava ali a parede branca de neve diante deles, e logo após a próxima crista lhe estalaram nas penas gotas de chuva. Alguns segundos depois a neve das asas tinha derretido. O maçaricão conduziu o resto do bando subindo em frente. A dor e o cansaço depressa desapareceram, as aves podiam de novo voar normalmente, e os músculos das asas repousaram. A neve desapareceu na escuridão. Alguns minutos depois romperam a frente fria e atingiram uma zona húmida e tranquila.

O CORREDOR DA MORTE

... E por vezes, nas tempestades do nordeste, bandos espantosamente numerosos de maçaricões eram empurrados pelo vento para as costas da Nova Inglaterra, onde pousavam completamente extenuados. A sua caça era então um exercício fácil, podendo simplesmente abater-se à cacetada. A Nantucket chegavam em bandos tão numerosos, que as reservas de munições da ilha não eram suficientes. E a carnificina parava, até chegarem, da terra firme, mais munições.
Os atiradores chamavam-lhes “aves-massa”, pois os maçaricões eram tão gordos, no outono, que o peito lhes rebentava quando caíam no chão, e a camada de gordura era macia como massa de pão. Não admira que fossem tão perseguidos, pois deviam ser um bom petisco à mesa.
Eram mansos e confiantes, e voavam em bandos tão densos que podiam facilmente ser abatidos em grande número... Dois caçadores que forneciam o mercado em Massachussetts ganharam 300 dólares com os seus tiros a um único bando... Crianças vendiam as aves a 6 cêntimos por cabeça... Em 1882, em Nantucket, dois caçadores abateram numa manhã 87 maçaricões... Em 1894, no mercado de Boston, já só apareceu um único à venda.

Um mundo feito à mão-10

Um dia destes teremos um forno público em S. Pedro!

Planeta-Mãe - 10

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PRAGAS VEGETAIS E OUTRAS CALAMIDADES
O sufixo “-cida” significa etimologicamente “que mata”, “anti-vida”. Assim, os pesticidas matam as pragas vegetais, os insecticidas matam os insectos, os fungicidas matam os fungos e os bolores, os herbicidas matam as ervas espontâneas, etc. As nossas batalhas contra estas formas de vida tidas como indesejáveis provocam importantes danos colaterais. Lutando obstinadamente contra os organismos vivos que comprometem as nossas exigências de rendimento, nós ignoramos as regras fundamentais da Vida. A guerra química que levamos a cabo nos campos fará de nós grandes perdedores.
Há mais seres vivos num só metro cúbico de terra fértil do que seres humanos no planeta inteiro. Bactérias, leveduras, fungos, vermes, insectos… tantos organismos implicados na vida do solo e a regeneração do seu húmus. Voltando ao solo depois da pulverização, os –cidas matam estas formas de vida. A terra torna-se mineral e estéril. E os adubos químicos tornam-se então indispensáveis às culturas.
As bactérias e os organismos monocelulares são as primeiras formas de vida aparecidas na terra. Tudo partiu daí e tudo aí regressa. Todos os ciclos do Ser Vivo, seja vegetal, animal ou humano, passam por estas vidas microscópicas para se regenerar e engendrar novas vidas, particularmente através dos ciclos de compostagem. São estas vidas do infinitamente pequeno que nós destruímos na nossa guerra cega. Com os nossos massacres químicos, comprometemos os fundamentos do ciclo de vida de que fazemos parte.
Esta guerra química tem uma outra consequência inquietante. Como todas as formas de vida terrestre, as espécies que nós exterminamos lutam incansavelmente para assegurar a sobrevivência da sua espécie.
Em qualquer tentativa de exterminação, há sempre sobreviventes. E quando os sobreviventes regressam, já se adaptaram aos riscos precedentes.
Todos os organismos vivos têm a capacidade de sofrer mutações, e de evoluir para se adaptarem ao ambiente. Por isso não é por acaso que as pragas vegetais são cada vez mais resistentes e virulentas. Do mesmo modo, as ervas ditas “daninhas” e os insectos “nocivos” sofrem mutações regularmente, para se adaptarem e resistirem melhor às nossas armas químicas. Em 1938, 7 insectos parasitas resistiam aos insecticidas; em 1954 eram já 23; em 1982, 432… Hoje são já 900 os organismos que oferecem resistência aos produtos químicos. E provocam a destruição de 35 a 40% das colheitas através do planeta.
Ao mesmo tempo não têm cessado de aumentar as quantidades de produtos químicos, a sua complexidade e o seu uso associado. Em França todos os anos são utilizadas 100 mil toneladas de pesticidas, no valor de 2 biliões de Euros. No mundo inteiro são utilizadas por ano 500 mil toneladas de matérias activas, quantidade que triplicou nos últimos 15 anos.
Confrontadas com um ambiente cada vez mais nocivo, as plantas cultivadas são cada vez mais frágeis. As pragas são cada vez mais resistentes e violentas. Cada batalha que nós cremos ganhar na luta contra a natureza, traz consigo o princípio da nossa próxima derrota. Lutando obstinadamente contra os organismos vivos que comprometem as nossas exigências de rendimento, acabamos a lutar contra as regras fundamentais da vida. Seremos, sem qualquer dúvida, os grandes perdedores desta guerra química. Uma guerra que já transformou as nossas terras em campos de batalha, e o conteúdo dos nossos pratos em fonte de inquietações.
O monopólio imposto pelas empresas de sementes reduziu igualmente a diversidade de culturas à escala mundial. As culturas de híbridos patenteados tornaram-se norma. Há 50 anos, a colheita mundial de trigo repartia-se por dezenas de variedades. Hoje mais de 80% da colheita depende apenas de três variedades, três híbridos patenteados e comercializados pelas multinacionais da agro-química, que são também sementeiras.
Os híbridos são plantas saídas de numerosos cruzamentos sucessivos. E oferecem muitas vezes elevadas características de produtividade e rendimento por hectare. Mas são plantas frágeis, e o fenómeno atinge todas as culturas. Há 50 anos, cultivavam-se na Índia cerca de um milhar de variedades de arroz. Hoje restam poucas dezenas. Os híbridos patenteados vão conquistando os campos dos últimos camponeses recalcitrantes.
Por causa desta fraca diversidade, e da fragilidade das variedades cultivadas, o aparecimento de novas pragas resistentes à química e particularmente virulentas poderá atingir brutalmente uma parte significativa das colheitas mundiais. Ao contrário do que querem fazer-nos crer as multinacionais da agroquímica, que hoje pretendem fazer-nos engolir os OGM (organismos geneticamente manipulados), os nossos métodos de cultura industriais e químicos estão longe de nos garantir soberania alimentar. Bem ao contrário, fazem-nos viver sob a ameaça de fomes mundiais sem precedentes.