segunda-feira, 4 de abril de 2011

Hora do folhetim - 51


(...)

Na tundra, os charcos de água derretida, os montes de cascalho e os pequenos prados na curva do rio não tinham mudado. O longo voo tinha esgotado o maçaricão. Mas, quando uma tarambola-dourada se aproximou demasiado da sua reserva, avançou para ela e atacou. O verão polar era curto, e ele tinha que manter a reserva pronta para a fêmea. O instinto dizia-lhe que ela em breve iria chegar.



O CORREDOR DA MORTE



L. L. Snyder

As aves do Árctico Canadiano

Imprensa da Universidade de Toronto em colaboração com o Museu Real de Zoologia e Paleontologia do Ontário 1955


Maçaricão-esquimó, Numenius borealis.
Presumivelmente extinto...
Visto pela última vez perto de Galveston (Texas), a 29 de Abril de 1945.
Antigamente muito disseminado...

Planeta-Mãe - 42

Mudança de olhar sobre a vida do campo
Desde que os homens começaram a cultivar a terra, raramente os que a trabalhavam eram os seus possuidores. Em nome desta posse, adquirida pela força ou por herança, os servos deviam alimentar os senhores, a sua corte, o clero, os notáveis, os militares, etc. Nos anos de más colheitas, as classes sociais superiores eram as primeiras a servir-se, muitas vezes à força e graças à submissão dos mais fracos. Os que trabalhavam a terra não recebiam muitas vezes mais que migalhas de colheitas que não eram consideradas suas.
Depender dos imprevistos climatéricos e dos caprichos da natureza não é certamente confortável. (…) Mas cultivar a terra num estado de espírito sereno também não é possível, quando as pressões financeiras e políticas são pesadas. Quando as exigências de produtividade e rendimento se tornam obrigações inalienáveis, os imprevistos da natureza tornam-se inaceitáveis. Mesmo tendo mudado na forma, a pressão que pesa sobre os ombros dos camponeses continua, no fundo, a mesma.
No nosso mundo capitalista, a pressão do rei dinheiro substituiu a opressão das leis marciais. Servos aviltados, desunhando-se nos campos para finalmente se contentarem com a sobrevivência, são uma realidade contemporânea. No Ocidente, os agricultores são mantidos pelos fornecedores, as poderosas multinacionais da agroquímica, que lhes fornecem sementes, adubos e pesticidas. E estão também sob a pressão doutras multinacionais, que são os principais clientes: a indústria agro-alimentar e a grande distribuição.
Grandes consumidores de combustível, os agricultores dependem igualmente das flutuações dos preços do petróleo. No momento da sementeira, não sabem a que preço venderão as suas colheitas. Mas sabem com toda a certeza que terão que fazer face aos prazos de vencimento dos créditos bancários. (…)
Vista desta forma, a Idade Média continua actual, apenas a forma e as aparências mudaram. Os “senhores” já não habitam hoje em castelos de pedra instalados no local; antes em torres de vidro e aço, nas grandes cidades, onde se encontram os detentores do capital. (…)

Riba-Côa - Abetarda


Planeta-Mãe - 41

Promessas e boas intenções
Estas constatações podem parecer alarmistas, às pessoas que se consideram informadas ouvindo as televisões. A cada catástrofe mediatizada, as emoções suscitadas na população tornam-se um terreno de marketing propício para os políticos. Podem vender uma boa imagem de si próprios, fazendo anúncios que comoverão os cidadãos chocados ou revoltados. As promessas apenas implicam os que nelas crêem. E os crentes raramente verificam, nos anos seguintes, que as boas intenções se transformaram em actos concretos. Um ano depois dos “motins da fome”, menos de 10% das promessas foram cumpridas. (…)
Em 2005, depois dos motins nos arrabaldes franceses, a estigmatização destas populações de excluídos transformou-se em compaixão. Surpreendidos pela amplitude dos acontecimentos, os media e certos espectadores procuraram conhecer as causas profundas duma tal explosão de cólera. As reportagens sobre as condições de vida nas cidades, os testemunhos sobre o sentimento de exclusão e marginalização, a ausência dum futuro credível para esta juventude condenada ao desemprego, acabaram por tocar os tele-espectadores.
O ministro do interior da época anunciou perante as câmaras um “plano Marshall para os arrabaldes”. Quem verificou o que aconteceu depois? Quando o orçamento da habitação foi o primeiro a sofrer cortes importantes em 2008, enquanto o da Defesa se mantinha e o do Eliseu galopava?
Toda esta ingenuidade crédula, esta necessidade de argumentos de boa consciência contrariados pelos acontecimentos… fazem certamente parte integrante das causas que explicam a nossa incapacidade de pôr em prática verdadeiras mudanças. (…) As nossas pequenas cabeças são formatadas para sonhar com a “Glória, Riqueza e Beleza”, e não para um regresso à terra, para uma felicidade na simplicidade, e um modo de vida em harmonia com a natureza.

Riba-Côa - Raposa


Hora do folhetim - 50

(...)
Maio ia a meio. A ondulante planície canadiana, lavrada de fresco, fumegava ao sol. Os maçaricões seguiam de perto a máquina enorme, que ribombava como a rebentação do mar. As minhocas eram gordas, e, antes de eles as engolirem, ficavam alguns segundos ao sol, revolvendo-se em contracções convulsas. Na tundra começava a derreter a neve. Nos ovários da fêmea, o primeiro de quatro ovos estava pronto a ser fecundado.
O macho elevou-se no ar, o seu canto forte soou impetuoso. Pairava lá no alto, sobre o terreno escuro da planície, onde uma faixa acabava de ser lavrada. O bramido da máquina parou de súbito, e o maçaricão mal se deu conta disso. Tinha todos os sentidos concentrados na fêmea, que lá em baixo tremia de excitação, acocorada no solo escuro.
O homem estava sentado em cima do tractor, imóvel, a cabeça deitada para trás. Olhava para cima, e com a mão protegia os olhos do intenso brilho do sol. O maçaricão deixou-se cair, a fêmea soltou um grito estridente. Ele apanhou do chão uma minhoca e avançou para ela. De pescoço estendido, batia fortemente as asas, ao mesmo tempo que viu o homem saltar do tractor e correr para a estaca duma sebe, onde tinha pendurado o casaco.
Em circunstâncias normais, mesmo os próprios maçaricões teriam então fugido assustados. Porém, tendo-se deixado alimentar, a fêmea continuava ainda a bater as asas, numa agitação apaixonada. Ela rendia-se à cópula, e, no êxtase do acasalamento, ambos ficaram cegos perante o que se passava em redor.
Um estampido ecoou no céu claro e luminoso, e o seu trovejar parecia vir de todos os lados. A terra espirrou em volta das aves, crepitante como pedras de granizo. O macho fugiu, mantendo-se rente ao solo. Assim podia fugir mais depressa, pois em subida seria menor a velocidade. Até que se deu conta de que a fêmea não estava junto dele. Voltou atrás, com gritos roucos e penetrantes de aflição. O corpo castanho dela estava ainda inclinado no solo. O macho pairava sobre ela e gritava como louco.
Então um segundo trovão ribombou sobre eles. Uma pancada violenta e invisível atingiu-o e arrancou-lhe duas rémiges de uma das asas. Rodopiou no ar e abateu-se ao lado da fêmea, completamente surdo. Estava espantado, confuso, perante um inimigo que atacava sem que ele pudesse vê-lo.
Novamente levantou voo. Depois venceu o medo e voltou para junto da fêmea. Ela estava de pé e gritava, rouca de medo. Batia as asas em vão, até que, lentamente, conseguiu levantar voo. Penosamente ganhou velocidade e altitude. O macho aproximou-se, voando rente a ela. Ele gritava alto, mas ela emudecera.
Voaram durante alguns minutos, até deixarem para trás o campo com o terrível trovão no céu quente. Mas a fêmea era lenta, cada vez se atrasava mais. O macho veio até ela, incitou-a a voar, e colocou-se de novo à frente. O voo dela era cada vez mais lento e desajeitado. Deixou de controlar uma asa e isso desequilibrou-a. A plumagem macia do peito tornou-se-lhe escura e húmida. Ela chamou de novo por ele, e não eram gritos de medo, mas gorgeios doces de ternura. De súbito ela despenhou-se no solo. As asas batiam ainda, parecia o vibrar excitado do acasalamento, e o seu corpo rodopiou, até se imobilizar no chão húmido.
O macho gritou, ela devia segui-lo. Ele ainda tinha medo do chão firme. Mas a fêmea não se mexia e ele manteve-se a circular. Ela devia ter ouvido a sua censura, mas não respondeu. Longo tempo depois venceu o medo e poisou a seu lado. Protector, limpou-lhe as penas com o bico.
A noite chegou e a tundra atraía-o, chamava-o, pois era tempo de fazer o ninho. Levantou voo várias vezes, chamou-a, voltou atrás, e ela não o seguiu. Finalmente adormeceu encostado a ela.
De manhã elevou-se no céu acinzentado. Dilatou os pulmões e fez ecoar o seu canto nupcial. Cortejou-a. Quis dar-lhe comida, ela não a aceitou. E a tundra chamava imperiosamente. Ele levantou de novo, chamou-a mais uma vez. Depois ganhou altitude e afastou-se. O sol nascente brilhava rosado na sua plumagem e ele dirigiu-se para o norte. Silencioso e sozinho. (...)