segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 2

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Na exaltação do regresso a casa, o maçaricão mal se lembra de que ficou assim, misteriosamente sozinho, durante três longos verões. Insaciado, o fogo do acasalamento acabou por se extinguir por si próprio, depois de ele ter ficado longas semanas solitário. Inexplicavelmente nenhuma fêmea veio ao seu encontro. Porém, dominado pelo instinto, o cérebro do maçaricão não sabia, nem perguntou porquê.
Voara dez horas sem descanso, e agora o corpo pedia-lhe alimento com urgência. A pulsação rápida e os processos metabólicos, que durante longas horas tinham mantido os poderosos músculos das asas em movimento, pediam muita energia. Começou a remexer a lama com o longo bico. Era um bico singular, adequado a este modo de procurar alimento. Tinha mais de seis centímetros de comprimento e era encurvado para baixo, à maneira de uma foice. O maçaricão abria-o levemente e arrastava na lama a ponta delicada, em pequenos movimentos circulares, para tactear as larvas moles de insectos e crustáceos. Era um processo muito rápido, e o bico entrava e saía da lama tão depressa como a agulha de uma máquina de costura.
Nas zonas baixas havia ainda acumulações cinzentas de neve, mas o sol brilhava quente e o Árctico palpitava já de vida. Havia alimento abundante, e o maçaricão comeu mais de uma hora sem interrupção, até o papo lhe ficar grotescamente inchado, na raiz do pescoço. Depois caiu em sonolência. Firmado sobre uma única perna, manteve o pescoço virado para trás e o bico enterrado nas penas do dorso. Era mais descanso do que sono. Os ouvidos e o único olho descoberto permaneciam incansavelmente atentos às raposas e às corujas polares, que se aproximavam como fantasmas. No seu corpo, os processos metabólicos desenvolviam-se rapidamente, e meia hora de descanso equilibrou a perda de energia do voo de dez horas. O maçaricão estava completamente restabelecido.
O verão polar era curto, e havia muito que fazer quando a fêmea chegasse. O maçaricão voou até uma elevação rochosa que se erguia a cerca de um metro do solo, poisou e olhou à volta. Voara catorze mil quilómetros para atingir esta terra inóspita, áspera e escalvada. Uma região pelada, vazia. Bétulas e salgueiros, curvos e deformados, tinham resistido às tempestades e ao frio do longo inverno. Durante decénios apenas lesmas rastejaram sobre eles, e não tinham crescido mais de quarenta ou cinquenta centímetros. A fronteira onde a floresta subpolar de pinheiros se tornava mais escassa, e onde começava a tundra norte-americana, encontrava-se oitocentos quilómetros mais a sul.
Em geral a terra era plana e húmida, tão salpicada de charcos pantanosos que agora, na primavera, ficava metade debaixo de água. Os pequenos montes de cascalho e os afloramentos rochosos que represavam os charcos e os impediam de transbordar, formando um imenso mar pouco profundo, estavam agora revestidos de espessos tapetes de musgos e líquenes, que reverdeciam muito rapidamente. Alguns centímetros mais fundo encontrava-se o gelo eterno, duro como a blindagem dum navio de guerra, as fundações geladas da terra.
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