terça-feira, 13 de outubro de 2009

Hora do folhetim - 3

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O maçaricão levantou voo, elevou-se lentamente e circulou em volta dos dois acres de terreno, com uma grande mancha de água e musgo, que demarcara como reserva. Por vezes, enquanto planava lentamente de asas abertas, fazia ressoar o seu canto nupcial, um gorgeio baixo e prolongado. Mas não havia no seu cantar qualquer jovialidade. Era antes um grito de guerra, um aviso a todos os que pudessem ouvi-lo: a reserva tinha um dono, a arder no fogo do acasalamento. Nada o atemorizava, e defendia a reserva para a sua fêmea, que havia de chegar.
Conhecia cada rocha, cada banco de cascalho, cada charco, cada arbusto da sua reserva. Embora em tanta aspereza e solidão não houvesse nada de notável, que pudesse servir de demarcação. A fronteira norte e oeste era formada pela curva do rio que avistara lá de cima, e os outros limites não eram muito acentuados. Apenas alguns blocos de granito espalhados pelo chão, nos quais brilhavam reflexos de pirite e de mica, um par de galhos de bétula e amieiro e algumas manchas de água castanha. Mas o maçaricão sabia exactamente onde terminava a sua reserva. Quase ao meio havia um montão de rochas. De tal modo seco que, em dez mil anos, desde que os glaciares tinham recuado, nem musgos nem líquenes tinham podido fixar-se nele. Porém, logo abaixo, onde se juntava a água escorrente, o tapete era espesso e exuberante. E seria aí, numa almofada de musgo, que a fêmea procuraria um lugar, escavaria um ninho achatado, em forma de prato. Cerca-lo-ia de folhas e ervas frescas, e nele havia de pôr os quatro ovos cor de azeitona.
O maçaricão voou em círculos cada vez mais altos e o seu canto nupcial tornou-se mais repetitivo e urgente. Subitamente parou, e o canto transformou-se num grito gárrulo e febril. Lá longe, a montante do rio, mancha castanha no céu acinzentado, voava uma outra ave em direcção ao norte, e o maçaricão reconheceu-a como membro da espécie. Esperou, pairando sobre a reserva em círculos cada vez mais apertados, e a outra ave aproximou-se. A fêmea vinha aí. Os três verões que o macho passara sozinho, esperando em vão, eram uma lembrança vaga e desagradável. Mas agora ela tinha desaparecido do seu cérebro tão poderosamente determinado por reacções instintivas, que apenas um pequeno espaço restava para a memória e a reflexão consciente. O instinto dominava-o completamente ao elevar-se na espiral do voo nupcial, não já com as poderosas batidas de asa habituais, mas esvoaçando como uma borboleta. Chegado ao ponto mais alto, deixou-se cair de novo, silvou de encontro ao solo, recuperou baixo sobre a tundra e voltou a subir.
A outra ave escutou-lhe o grito selvagem, mudou de direcção, veio velozmente ao seu encontro. Obedecendo instintivamente às leis da reserva, que todas as aves conhecem, a fêmea poisou numa rocha musgosa, situada um bom pedaço fora da reserva do macho. Excitado, ele ardia em paixão. Numa sequência rápida efectuou ainda várias danças nupciais, subiu no ar ruidosamente até quase desaparecer da vista, desceu de novo em picada violenta, e de cada vez quase roçou o solo. Durante alguns minutos, a fêmea alisou indiferentemente as penas, sem dar atenção a estas demonstrações amorosas. Depois correu e voou sobre o terreno, alternando rápidas batidas de asa com passadas febris. Entrou na reserva e baixou-se, submissa, ao chegar perto do macho. Este soltou um assobio estridente e subiu na vertical para um último voo, pairou lá no alto sobre ela, deixou-se cair como um meteoro e poisou a cerca de dois metros de distância. Ficou parado por um momento, eriçou as penas, esticou o pescoço e caminhou para ela. Porém, a cerca de um metro, parou subitamente. Emudeceram os sons meigos de ternura que até ali lhe saíam da garganta, e em seu lugar ecoou uma rápida sequência de gritos de advertência. O comportamento humilde e submisso da fêmea também se modificou. De súbito pôs-se de pé e afastou-se. O macho já não a cortejava, baixou a cabeça como um galo de combate e investiu contra ela. A fêmea desviou-se e atirou-se para o ar. Ele seguiu-a, aos gritos, ameaçando-a com o bico repetidas vezes.
O impulso nupcial do maçaricão-esquimó transformou-se de repente em fúria agressiva. A fêmea era uma intrusa, em vez de uma companheira. De perto, ele reconheceu a sua penugem mais escura e a sua postura diferente. Embora bastante semelhante, era um maçaricão da espécie norte-americana. Ele sabia, por reacções instintivas, criadas pela natureza para evitar acasalamentos estéreis entre espécies diversas, que não se tratava da fêmea que aguardava. Afugentou-a durante meio quilómetro, com uma fúria tão apaixonada como o seu amor alguns segundos antes. Depois voltou à reserva e continuou à espera. A sua fêmea chegaria em breve.
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