domingo, 11 de outubro de 2009
Hora do folhetim - 1
A beleza e o espírito de uma obra de arte podem ser reproduzidos, mesmo depois de ela ter sido destruída. Uma harmonia desaparecida pode inspirar de novo os criadores. Porém, se o que estiver em causa for uma espécie de seres vivos, terão que passar céu e terra, antes que ela possa voltar a existir.
C. William Beebe, “A ave. Forma e função.”
1
Em Junho a noite do Árctico é muito curta, pouco mais que um intermezzo de penumbra cinzenta. Durante os longos dias, nuvens de mosquitos enxameiam das valas profundas, como cortinas de fumo, sob o degelo da tundra.
Antigamente, nesta época do ano, as populações esquimós aguardavam aqui o doce, fremente e longo trinado dos maçaricões-esquimós. Eles regressavam ao Árctico em grande número, trazendo consigo a perspectiva de carne tenra. Mas os grandes bandos já não aparecem. A sua própria lembrança se perdeu, ficando apenas a lenda. Pois o maçaricão-esquimó, primitivamente uma das mais abundantes aves de caça da América do Norte, deixava atrás de si, na primavera e no outono, um verdadeiro corredor da morte. Choviam tiros de todos os lados, e ele foi demasiado lento a aprender o que era essencial à sobrevivência: o medo, perante a espingarda do caçador.
É verdade que a espécie se manteve, mas encontra-se em perigo extremo de extinção. Tal como antes, os poucos maçaricões-esquimós que ainda existem continuam a fazer a sua longa e perigosa migração, desde a Patagónia argentina onde passam o inverno, até às planuras húmidas da tundra, que descem para o mar polar. Aqui procuram a sua fêmea. Mas o Árctico é imenso, e, as mais das vezes, a sua busca é vã. Agora voam sozinhos, os últimos representantes de uma espécie moribunda.
Quando clareou a penumbra da noite sobre o Árctico e mais um dia de Junho começou, primeiro com um vermelho pálido e depois um amarelo vivo, o maçaricão reconheceu finalmente, quase mil metros abaixo de si, a familiar curva do rio, debruada de gelo. Voara nessa noite oitocentos quilómetros através da tundra plana e uniforme, sobre muitas curvas de rios que podiam confundir-se com esta. Porém ele sabia que só agora estava em casa, e sentiu-se esgotado. Tinha as pontas castanhas das rémiges e das tectrizes em desalinho, da marcha migratória que começara abaixo dos trópicos e terminara sobre estas planuras estéreis e escalvadas, após um raivoso voo ininterrupto. O instinto do acasalamento rugia nele.
O maçaricão abriu as asas e deixou-se cair em glissagens laterais. Pedaços de gelo rosados e brilhantes, flutuando no rio acastanhado, aproximavam-se vertiginosamente. Então recuperou da picada e desceu em voo planado até ao chão. Pousou na margem lamacenta dum charco esmaltado, um pouco afastado do rio.
Os maçaricões chegam aqui em Junho, desde há milénios, para defender a reserva e os locais de nidificação. Na tundra desolada aguardam febrilmente as fêmeas, esperando que elas procurem aqui o seu companheiro para este ano. E, durante o tempo de espera, mal conseguem aliviar o instinto de acasalamento nas lutas com os vizinhos, pela defesa da reserva que escolheram.
(...)
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