sábado, 9 de janeiro de 2010

Hora do folhetim - 16

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Agora apenas tinham que comer durante duas semanas e acumular gordura para o longo voo do Atlântico, até à América do Sul. Agosto ia a meio e o verão no Lavrador quase tinha passado. As noites geladas alternavam com dias carregados de nevoeiro. Elas comiam as bagas dos arandos, comiam e comiam, até as pernas e os bicos e as penas e os excrementos ficarem manchados de sumo púrpura. Quando por vezes a névoa se dissipava e aparecia o sol, o que era raro, voavam até à praia, na maré baixa, e procuravam caracóis e camarões.
Dia após dia deparavam com um bando de tarambolas-douradas. O maçaricão deixava então de procurar alimento, e passava uma vista de olhos pelo bando, à procura dum companheiro da espécie. Mas não aparecia nenhum, e do género das narcejas apenas as tarambolas-douradas faziam caminho por aqui. Havia, porém, muitas outras aves, sobretudo gaivotas, que gritavam roucas na neblina. Em frente da costa passavam eider-reais, em infindáveis bandos pretos e brancos. As tordas-mergulheiras e os araus, com as suas asas curtas e o voo pesadão, grasnavam e brigavam ainda nos picos da falésia, onde tinham criado as ninhadas.
Nesta inactividade, o maçaricão e as tarambolas acumularam gordura muito rapidamente. Os seus peitos ficaram de novo redondos e macios, da gordura armazenada sobre os poderosos músculos. Agosto ia no fim, e de novo a antiga inquietação se apoderou deles. Quando o tempo aclarava e o vento era favorável, milhares de tarambolas levantavam voo e dirigiam-se para sul, por sobre o golfo de São Lourenço, na direcção do imenso Atlântico. Mas o maçaricão esperava ainda, qualquer coisa o refreava. O seu pequeno cérebro podia senti-la, embora não a soubesse definir. Vagamente considerava apenas que os maçaricões-esquimós tinham que seguir este caminho, no regresso da tundra.
A sua impaciência foi crescendo e ele achava-se dividido entre o desejo de partir e o de esperar um pouco mais. Esta intranquilidade serenou um pouco quando começou a voar com o seu bando, junto à costa. Eram longos troços, com ele no comando. Então algumas aves abandonavam a formação e juntavam-se, às duas e três, a outras tarambolas que partiam para o sul. Quando chegou Setembro e as noites se tornaram de repente mais frias, o bando já tinha apenas metade do tamanho inicial. Dos bancos de nuvens que deslizavam do mar para terra caíam de vez em quando grandes flocos de neve. As últimas tarambolas tinham partido. Restava apenas o seu bando, para além das gaivotas e dos eider-reais.
Os arandos ficaram inteiriçados sob o gelo e já não deitavam sumo, tornando escasso o alimento. E a gordura que todos tinham armazenado como reserva de energia para a travessia do oceano começava já, demasiado cedo, a ser utilizada.
Finalmente o maçaricão não pôde mais refrear o impulso migratório. E, após um dia tempestuoso em que as temperaturas pouco tinham subido além do ponto de congelação, caía a noite fria quando ele bateu as asas e se elevou no céu sombrio. O tecto de nuvens estava baixo e o bando organizou rapidamente a formação, dirigindo-se para o mar, com forte vento de frente. A esta altitude o vento fustigava-o já como uma tempestade, o que lhe reduzia a velocidade para apenas metade. Frequentes rajadas tempestuosas desorganizavam a formação, e um par de tarambolas mais fracas ficaram para trás. Antes de perder de vista a acidentada costa do Lavrador, o maçaricão soube que não poderiam prosseguir o voo nestas condições. Por isso voltou para trás e poisou o bando numa encosta abrigada do vento. O temporal bramia por cima deles.
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