quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Hora do folhetim - 17

(...)
Tinham falhado a partida. Mas agora tanto as tarambolas como o maçaricão estavam impacientes por iniciar a longa viagem. Tentaram-no mais que uma vez em vão. Inquieto, ele esperava condições de tempo propícias, mas fazia-se tarde e eram raros os dias bons. As névoas aclaravam, mas o vendaval rugiu durante três dias e três noites, para os lados do sul. Com interrupções, as aves continuaram a devorar caracóis e arandos já murchos. E ao quarto dia o vento mudou. Mais fraco e mais frio, soprava agora do norte. Este vento de cauda era tão desfavorável como o vento de frente, pois dificultava o equilíbrio do voo e afectava os delicados controles reflexos das rémiges. Durante três dias assobiou o vento norte. Até que lentamente acalmou, e no terceiro dia à noite virou de oeste, agora apenas uma ligeira brisa. O maçaricão tinha aguardado este vento de lado. E a noite caiu, clara e fria.
As aves levantaram voo, ganharam altura e cerraram a formação, com o maçaricão à cabeça. Tudo aconteceu com a precisão habitual, dir-se-ia quase automática. Ele e muitas tarambolas já tinham alguma vez superado este sobrevoo outonal do oceano, mas guardavam disso apenas uma vaga lembrança. A maior parte ficou confusa quando, de manhã, só mar deserto e vazio se estendia por baixo deles. Mas continuariam a voar sempre em frente, passaria mais uma noite e uma manhã, e debaixo deles estender-se-ia ainda o mesmo mar. As aves sabiam que ele era um elemento hostil, só em terra e no ar se sentiam à vontade. Quando não havia agitação no mar e excepcionalmente a água estava calma, poisavam algum tempo na superfície líquida e permitiam-se uns momentos de descanso. Porém, nadavam muito desajeitadamente. As suas penas não eram suficientemente gordurosas e encharcavam-se rapidamente. No alto mar raramente havia condições que permitissem poisar, mesmo momentaneamente. Por norma tinham que realizar o longo voo sem qualquer pausa, sem alimento e sem descanso.
A luz calorosa do norte brilhava ainda atrás deles, no céu do Lavrador. Mas apenas voltariam a ver terra quando poisassem na margem de um rio, na selva húmida da Guiana ou da Venezuela, com as penas desgrenhadas e os músculos entorpecidos de cansaço. No entanto, ao levantar voo, fizeram-no sem hesitação nem medo. Não reconheciam o dramatismo do momento, sentindo apenas um vago alívio por terem finalmente iniciado a viagem. Era uma bênção os seus pequenos cérebros não poderem alcançar a nua realidade: criaturas minúsculas como eram, simples matéria aprisionada pela terra, desafiavam, mesmo assim, o mar e o céu imensos.


O CORREDOR DA MORTE

Para incrementar e divulgar o conhecimento humano. Instituto Smithsoniano, Washington. Relatório anual da comissão de vigilância, sobre o ano que finda em 30 de Junho de 1915...
Durante os meses de Agosto e Setembro, muitos anos ainda depois dos meados do séc. XIX, chegavam à Terra Nova e às ilhas da Madalena, no golfo de São Lourenço, milhões de maçaricões-esquimós, que obscureciam o céu... Grupos de 25 e 30 homens abatiam num único dia duas mil aves, que iam para a feitoria da Companhia da baía do Hudson, em Cartwright, no Lavrador.
Os pescadores costumavam salgar estas aves em barricas. À noite, quando dormiam nas escarpas da costa em grande número, homens equipados de lanternas para as encandear podiam aproximar-se delas e abatê-las em massa, à cacetada.

Sem comentários:

Enviar um comentário